Por que evitar os alimentos ultraprocessados para as crianças? — Gama Revista

Por que evitar os alimentos ultraprocessados para as crianças?

Especialistas falam dos perigos desse tipo de alimento e sobre como deixar a refeição dos pequenos mais saudável

Manuela Stelzer 21 de Outubro de 2022

Se tem algo que o Brasil pode se vangloriar é de sua cultura alimentar. Prova disso é o conceito de “comida de verdade”, que na cabeça do brasileiro significa: um prato de arroz, feijão, salada e carne. Fast food passa longe dessa concepção de alimento saudável. A distância e pouca intimidade com os ultraprocessados estiveram ao nosso favor, diferente da história que trilham os norte-americanos. Mas infelizmente, cada vez mais vemos essa realidade mudar.

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Políticas públicas e economia enfraquecidas tornam a população cada vez mais vulnerável ao consumo de alimentos nutricionalmente pobres e à fome – é o que afirma, em ensaio ao Nexo Políticas Públicas, a vice-diretora da Faculdade de Saúde Pública da USP, Patrícia Jaime. “As consequências são claras – já conhecidas e monitoradas pela epidemiologia nutricional. Sem acesso à alimentação de qualidade, os caminhos são preocupantes”, escreve. E exemplifica: variedade reduzida de ingredientes presentes no prato, insegurança alimentar e fome, e adesão aos ultraprocessados na dieta.

Pesquisa da USP mostra como a ingestão de pães de fôrma, salgadinhos e refrigerantes aumentam em 28% a perda de habilidades cognitivas

De acordo com a nutricionista, socióloga da alimentação e professora da UFES, Elaine de Azevedo, o sistema agroalimentar baseado na tríade formada por soja, milho e trigo é responsável por gerar fome. “São três escoamentos possíveis para esses alimentos: exportação, ração para animais e indústria de ultraprocessados. Então, é como se eles criassem o problema da fome e já oferecessem a solução, que são esses ultraprocessados.” A questão, explica a especialista, é estrutural e não é inédita: nos anos 1960, sai de cena o pequeno suínocultor que produzia banha e é apresentada ao Brasil a margarina como resposta. “É uma ‘solução’ parcial e paliativa, que não vai dar conta de oferecer alimento e saúde ao mesmo tempo.”

Além de apontar os perigos para a saúde da população num geral, nutricionistas, chefs, pesquisadores e cientistas alertam para o consumo desses alimentos pelas crianças. Uma pesquisa recente, conduzida pela USP, mostrou como a ingestão de pães de fôrma, salgadinhos e refrigerantes aumentam em 28% a perda de habilidades cognitivas. E se os ultraprocessados fazem parte da dieta desde cedo, grande parte do futuro do pequeno pode ficar comprometido.

O que são?

Óleos, gorduras, açúcares, amido e proteínas são alguma das substâncias que compõem os ultraprocessados, além de gorduras hidrogenadas, corantes, aromatizantes e vários tipos de aditivos, “usados para dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes”, define a nutricionista e consultora da ACT, Kelly Alves. Segundo ela, entram nessa categoria: refrigerantes, energéticos, embutidos, congelados prontos para aquecer (como aquela lasanha do supermercado), salgadinhos, cereais matinais, entre muitos outros. “Para distinguí-los, é preciso consultar a lista de ingredientes que, por lei, deve constar nos rótulos. Um número elevado de ingredientes, de cinco para mais, e sobretudo a presença daqueles com nomes não familiares, são os principais indicativos.”

Esses alimentos (de “péssima composição nutricional”, como define Alves) são ricos em gorduras, açúcares e sódio, e pobres em fibras, vitaminas, minerais e outras substâncias importantes. “Mesmo quando esses nutrientes são sinteticamente adicionados ao produto, como um achocolatado que é rico em vitaminas e minerais, não há garantia de que ele reproduza no organismo a mesma função que a vitamina A presente em uma fruta alcança, por exemplo.”

A ingestão de ultraprocessados, de acordo com a nutricionista, contribui para o desenvolvimento precoce de doenças crônicas, como obesidade, diabetes, hipertensão e até câncer. E na infância, além de todos esses perigos, eles podem “prejudicar o crescimento e o desenvolvimento da criança, por serem alimentos pobres em nutrientes essenciais”. “Isso sem falar das cáries dentárias, devido a quantidade elevada de açúcar.”

Momento crucial

A nutricionista materno-infantil Juliana Dal Bom alerta para a importância da infância na consolidação de hábitos alimentares e na prospecção de um futuro saudável. “Crianças pequenas, de até dois anos, estão em um momento crucial na programação de seu metabolismo para o resto da vida, uma espécie de ‘poupança’ de saúde que podemos ajudá-las a construir.” De acordo com ela, o consumo de ultraprocessados nessa fase pode justamente promover o efeito contrário.

São alimentos que desregulam a sinalização de fome e saciedade. Favorem maior ingestão de calorias e aumentam o risco de ganho de peso excessivo

“São alimentos que desregulam mecanismos de sinalização de fome e saciedade, favorecendo maior ingestão de calorias e aumentando o risco de ganho de peso excessivo”, explica. “E crianças que apresentam apresentam esse excesso de peso no início da vida tendem a mantê-lo na adolescência e ao longo da idade adulta.” Ela também cita a possibilidade de desenvolver deficiências nutricionais, cujos efeitos podem danificar, além do crescimento e do desenvolvimento, a capacidade de aprendizagem, a imunidade, a saúde intestinal.

Outro fator relevante para manter os pequenos longe dos ultraprocessados é a dificuldade de separá-los mais tarde. Como Juliana Dal Bom afirma, hábitos alimentares inadequados são formados e consolidados especialmente em fases precoces da infância. “Os adultos sabem bem o tamanho do desafio quando vão tentar mudar esses hábitos já mais velhos.”

Caminhos para evitá-los

As prateleiras dos supermercados são como campos minados para quem quer fugir dos ultraprocessados. Ler atentamente os rótulos é um dos meios para dribá-los, mas há outras maneiras para construir uma dieta mais natural e menos industrializada – além, é claro, da necessária mudança estrutural para que famílias de classes baixas possam consumir maior quantidade de alimentos in natura. “Só são produtos ‘baratos’ porque não consideram as externalidades socioambientais embutidas no preço de um miojo, um refrigerante, entre outros”, explica Elaine de Azevedo.

Como as crianças são reflexo do meio em que vivem, a nutricionista Juliana Dal Bom sugere trabalhar os hábitos alimentares com cuidado dentro de casa. De acordo com ela, não devemos manter esses produtos no lar, já que o mais adequado é consumí-los de forma eventual e moderada. “Assim ensinamos ao pequeno que os ultraprocessados existem, mas são ingeridos apenas em algumas ocasiões, sem valorizá-los demais e colocá-los como prêmio.”

Kelly Alves segue na mesma linha, e relembra como a dieta saudável e natural de uma criança é responsabilidade compartilhada da família, Estado e sociedade, ao citar o Estatuto da Criança e do Aolescente. “Escolas livres de ultraprocessados contribuiriam para a redução do consumo, podendo colaborar para a adoção de bons hábitos alimentares em casa. Também precisamos romper com a lógica de responsabilização somente das mulheres para essa tarefa.”

A preocupação em melhorar a alimentação da criança é a chance de mudar a mesa para a toda a família

O Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos é um documento de apoio importante para as famílias, com diretrizes que incentivam “cuidados de promoção à saúde, crescimento e desenvolvimento das crianças para que elas atinjam todo seu potencial”, diz Alves. A publicação do Ministério da Saúde, ao lado do Guia Alimentar para a População Brasileira, do mesmo órgão, tornaram-se referências mundiais. “Um aspecto muito relevante das recomendações ali presentes é que a preocupação em melhorar a alimentação da criança é a chance de melhorar a de toda a família.”

Entre as principais diretrizes, apontadas pela nutricionista, estão cozinhar a mesma comida para a criança e para a família e incluir os filhos no planejamento das refeições, na organização das compras e em outras etapas do processo. Também zelar para que a hora de comer seja um momento de experiências positivas, aprendizado e afeto junto ao núcleo familiar. Segundo o documento, se o pequeno percebe que ali há gosto por alimentos saudáveis, ficará estimulado a aceitá-los, o que também incentiva preparações que transmitem e perpetuam tradições familiares. “Mais do que falar sobre alimentação saudável com a criança, é preciso dar o exemplo e oferecer oportunidades para que os pequenos façam boas escolhas”, finaliza Juliana Dal Bom.

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Este conteúdo é parte da série “Como enfrentar a insegurança alimentar na infância no Brasil”, realizada em parceria com a FJLES (Fundação José Luiz Egydio Setúbal), instituição que atua em iniciativas sociais dedicadas à melhoria da qualidade de vida na infância, ao conhecimento científico sobre a saúde infantil e à assistência médica infanto-juvenil.

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