A responsabilidade pela amamentação não é só da mãe, é coletiva — Gama Revista
Qual o direito das mães?
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Mariana Caldas @mmarianacaldas

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Estilo de vida

Amamentação: responsabilidade coletiva

Muito além da escolha individual, especialistas e mães concordam: a amamentação depende da colaboração de todos. Da família, da sociedade e do Estado

Ana Mosquera 08 de Maio de 2022

Amamentação: responsabilidade coletiva

Ana Mosquera 08 de Maio de 2022
Mariana Caldas @mmarianacaldas

Muito além da escolha individual, especialistas e mães concordam: a amamentação depende da colaboração de todos. Da família, da sociedade e do Estado

E a amamentação, como anda? “Você amamentou?”, “Até quando?”, “Ainda está dando?”. “Que cafona!”, foi um dos comentários que a publicitária Rafaella Crepaldi escutou de mais uma pessoa disposta a questionar sua escolha pela livre demanda – ato de amamentar o bebê sempre que ele quiser. Ainda que a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) seja de aleitamento materno exclusivo até os seis meses e de aleitamento materno continuado até os dois anos ou mais, para a prevenção de infecções e outras doenças na mãe e no bebê, os números no Brasil e no mundo ainda são bem baixos.

Segundo relatório do Estudo Nacional de Nutrição e Alimentação Infantil (ENANI), coordenado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), das cerca de 15 mil crianças avaliadas em 2019, 62,4% foram amamentadas na primeira hora de vida. A prevalência de aleitamento materno exclusivo (AME) em menores de 6 meses foi de 45,8%, enquanto a predominância da prática no primeiro ano de vida foi de 43,6%. Ao comparar as regiões, enquanto no Sul o AME atingiu 54,3% dos bebês, no Nordeste essa porcentagem foi de 39%. No caso do processo continuado, a lógica se inverteu: 51,8% no Nordeste e 37,8% no Sul. No país, a duração do aleitamento exclusivo foi de três meses e do continuado, de 15,9 meses.

Apesar de o Brasil ser referência mundial no assunto há 40 anos, com ações e campanhas, e a criação de espaços como os Hospitais Amigos da Criança, o Teto de Gastos e a investida agressiva da indústria alimentícia prejudicou o desenvolvimento da área nos últimos anos. “São os amargos frutos que estamos colhendo com a situação do país”, diz a Dra. Nina (Honorina de Almeida), pediatra e especialista em aleitamento materno.

Em termos mundiais, de acordo com a OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde)/OMS, a média não fica longe: 44% para aleitamento exclusivo até seis meses. Nas Américas, o percentual cai para 38%, sendo apenas 32% as crianças amamentadas até os dois anos. Já na América Latina e Caribe, a taxa de bebês alimentados com leite materno logo após o parto é de 48%.

Quando o assunto é amamentação, as variáveis são mesmo inúmeras, o que faz de cada história única – não certa, nem errada. Há mães que sonhavam amamentar e se frustraram por não dar certo logo de cara, outras que optaram por não utilizar chupeta ou mamadeira (o que muitas vezes pode prejudicar a pega do peito) no primeiro filho e já tem certeza que com o segundo será diferente, aquelas que nutriam zero idealização por esse ato, mas acabaram topando participar por questão de responsabilidade.

É o caso da escritora e ativista Marcela Tiboni, que optou pela lactação induzida – indução à produção de leite pelo uso de medicamentos e estímulo por bomba de ordenha –, para partilhar esse cuidado com a companheira, a arquiteta Melanie Graille. Autônomas e sem chance de licença-maternidade, ambas perceberam que dividir a rotina da amamentação dos gêmeos era o melhor caminho. “Nunca foi para criar vínculo, para me sentir mãe de verdade. O desejo de amamentação não nasceu comigo. O único desejo era o de maternar”, diz Marcela.

Marcela Tiboni e Melanie Graille com Bernardo e Iolanda  Michele Crestani

A rede de apoio, sobretudo no início, foi a social. Foi ali que recebeu indicações de profissionais e relatos de outras mães lésbicas que tinham passado pelo mesmo processo e amamentado seus bebês até dois ou três meses. Iolanda e Bernardo mamaram nas duas até os dois anos de idade. “Tivemos uma produção de leite parecida, o que entendemos hoje que foi um privilégio, porque eles não tinham preferência”, ela lembra. Em termos de privilégios, Marcela faz questão de ressaltar os seus como “mulher branca, moradora de São Paulo capital, de classe média alta, com mestrado”. “Eu tenho a permissão de não recuar frente a uma diretora que diz que não vou amamentar meus filhos no recinto hospitalar”, ela lembra do acontecido na ocasião do nascimento dos bebês. A partir dali, decidiu militar em todos os lugares, contribuindo para a luta de outras mães pela dupla maternidade, com respeito e dignidade, e a garantia dos direitos básicos.

O direito da criança começa no peito?

Tanto Marcela e Melanie quanto Rafaella dividiram a livre demanda com a volta ao trabalho como autônomas. “Minha carreira não tem horário regrado, essas sim são super prejudicadas. Só que no meio do dia, meu marido tinha que pegar o carro e ir até mim para dar o peito. Foi gostoso, mas foi um ‘trampo’ sustentar a escolha”, fala Rafaella, que sempre contou com uma rede de apoio, mas que confessa que a falta de garantia gerou medo de perder espaço no lugar de trabalho.

No caso dos empregos registrados, o direito existe, mas nem sempre contempla as puérperas. “Ainda me deparo com mães que me dizem que não tem onde extrair o leite quando voltam a trabalhar, que muitas vezes precisam descartar o alimento ordenhado, por não terem onde armazenar ou por não ter um local adequado, privativo e higiênico de ordenha”, diz Camila Rosa, terapeuta e consultora em aleitamento materno – profissional que oferece assistência, apoio e orientação à amamentação, com relação ao manejo e aconselhamento.

Ainda me deparo com mães que me dizem que não tem onde extrair e armazenar o leite quando voltam a trabalhar

Segundo o artigo 396 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), até os seis meses, a mulher tem direito a dois descansos de meia hora para amamentação, durante a jornada diária. Até porque, a lactante precisa esvaziar o peito regularmente – do contrário há uma questão de saúde envolvida. O acúmulo de leite nos ductos lactíferos por períodos prolongados pode impedir o fluxo natural do líquido, podendo causar a mastite (inflamação das mamas), além do acúmulo de bactérias e outros agentes infecciosos.

“Há lugares que não possibilitam tempo para essa necessidade das mães que amamentam. Se pensarmos que a licença-maternidade média é de quatro meses e que o aleitamento exclusivo é recomendado até o sexto mês, a conta não fecha*, complementa. Em 2021, o senador Fabiano Contarato, da REDE/ES, criou um projeto de lei que aumenta para dois anos o direito às pausas para amamentação, mas o PL ainda está em tramitação no Plenário do Senado Federal.

“Se considerar mulheres negras que trabalham no mercado informal, elas vão amamentar menos”, pontua a Dra. Tiacuã Fazendeiro, pediatra e co-criadora do Igbaya, projeto de apoio à amamentação negra, que surgiu de uma inquietação sobre a ausência de profissionais negras nos espaços de formação. Dali, em 2020, nasceu a I Semana de Apoio à Amamentação Negra no Brasil. Além de romper com mitos como o da maior resistência da pele negra ao amamentar, o projeto visa discutir o recorte sociocultural na amamentação dessas mulheres. “Muitas vezes, essa mulher vai ter mais preocupações, o que impacta na produção de leite”, diz.

Se a licença-maternidade média é de quatro meses e o aleitamento exclusivo é recomendado até o sexto, a conta não fecha

Referência em doação, com a maior Rede de Banco de Leite Humano (rBLH) do mundo, o país ainda conta com má distribuição desses espaços, de acordo com ela. “Em São Paulo, estão na região mais central. Nas periferias não tem banco de leite. As mães vão precisar circular às vezes duas horas para ter acesso a esse banco”, comenta a pediatra. É nos mais de 225 bancos públicos do país que, além da doação, mães com dificuldades e dúvidas sobre lactação – capacidade de produzir leite – e amamentação podem receber auxílio para nutrir o próprio bebê.

“Eu gosto de pensar que aleitamento materno é uma questão de saúde pública”, diz a jornalista Juliana Gomes, do Comida Saudável Pra Todos. Há pouco mais de um mês, ela tem as salas de ordenha como segunda casa. Nascido de um parto de emergência, seu bebê segue na UTI neonatal, sendo alimentado pelas enfermeiras, por sonda, com o leite da própria mãe, tirado a cada três horas. Suas experiências nesses espaços, contudo, não têm sido sempre as mais felizes.

Vinculados ao SUS, enquanto em um hospital havia enfermeiras extraindo o leite das mães em momentos de cansaço extremo e médicos aplicando acupuntura para que elas aumentassem a produção, no outro a sala dedicado à prática é “minúscula, sem ventilação, com uma funcionária”, segundo Juliana. Sem potes padronizados, assim que o leite chega no lactário é congelado até a hora da alimentação do bebê. “Se eu tirar mais do que ele precisa, jogam fora. Sofro muito para ordenhar na mão, demora demais. Às vezes a cabeça está péssima e fica ainda mais difícil. Para jogarem fora assim!”, ela desabafa, acrescentando que as melhorias necessárias ultrapassam os aspectos estruturais, “A produção e a extração do leite dependem de fatores emocionais. É imprescindível que os hospitais ofereçam condições que reduzam o estresse, que dêem suporte psicológico, que estimulem os pais a contribuir nesse processo”, sugere a jornalista.

Uma aldeia para criar (e amamentar) uma criança

Muito além do ato em si, a tal rede de apoio é um dos principais determinantes que vão influenciar no processo da mãe, na nutrição do bebê. “A amamentação tem a ver com comer uma comida quentinha, alguém para lavar a roupinha do neném. Essa ajuda que às vezes vem de amigos e familiares, porque tem a ver com a mulher descansar”, são as dicas da Dra. Nina, da Casa Curumim, espaço de excelência na assistência ao aleitamento materno, em São Paulo. Há dez anos, a iniciativa conta com profissionais especializados para atendimento privado e disponibiliza vários serviços gratuitos, a fim de contemplar famílias em situação mais vulnerável.

“Não existe ‘a’ mãe de verdade e a mãe não é menos mãe por não amamentar. A maternidade é uma construção cultural”, elucida Marianna Muradas, do Doulas de Adoção, projeto que visa acolher e apoiar emocionalmente famílias nesse processo de parentalidade. São muitas as mulheres que estão em processo de adoção e que nutrem o sonho de amamentar, cogitando a lactação induzida. Contudo, como explica Marianna, é fundamental trabalhar com as futuras mães sobre a desromantização desse processo. “Sabendo que a amamentação não é garantia de vínculo e principalmente não sabendo quando essa criança vai chegar”, ela esclarece.

“É importante lembrar que no puerpério da adoção, essa família está sendo avaliada pela equipe técnica do Judiciário. Qual o preparo emocional essa pessoa vai ter?”, ela coloca luz sobre questões práticas sobre amamentação e adoção, com outro olhar para o fortalecimento das relações, “Nós estamos garantindo o direito da criança de ter uma família. Será uma construção diária. No ofertar do alimento, seja na mamadeira, seja na colher, no cuidado da refeição, nas pessoas olharem nos olhos e estarem disponíveis ali”, finaliza a doula.