Chef premiado Luiz Filipe Souza fala sobre crise — Gama Revista

‘Briguei com meus demônios’

No momento em que ganhou a primeira estrela Michelin, foi finalista da Copa do Mundo da gastronomia e eleito um dos melhores da América Latina, o chef Luiz Filipe Souza, do Evvai, enfrentou a maior crise da história dos restaurantes

Isabelle Moreira Lima 04 de Setembro de 2020

Este deveria ser o ano do cozinheiro Luiz Filipe Souza, chef do Evvai, restaurante de alta gastronomia localizado na região nobre dos Jardins, em São Paulo. Nos últimos 12 meses ele iniciou uma nova fase na carreira de pouco mais de uma década, ao ganhar destaque no cenário nacional e expandir sua imagem internacionalmente com a cozinha chamada “oriundi”, que alia produtos regionais a receitas italianas, numa pegada que junta tradição a elementos contemporâneos.

Em 2019, foi finalista do Bocuse D’Or, competição de cozinheiros que acontece na França e é conhecida como a Copa do Mundo da Gastronomia; ganhou sua primeira estrela Michelin, classificação do guia que reúne os melhores restaurantes de uma cidade; e figurou na lista 50 Best da América Latina, da revista inglesa Restaurant, na 40ª posição.

E eis que uma pandemia se impõe no que parecia a decolagem de um foguete. Todos os planos do jovem chef foram para o freezer e, com a alongada quarentena, o setor inteiro vive sua maior crise da história e em âmbito mundial. Os reflexos são sentidos principalmente nos maiores centros gastronômicos do mundo. Em São Paulo, estima-se que 40% dos restaurantes podem fechar.

Mas nem tudo é fim do mundo. Desse cenário de caos, emergem outros negócios. O crescimento do delivery foi estupendo e, com ele, as dark kitchens, cozinhas que reúnem diferentes marcas num mesmo espaço e com estrutura de entrega, uma tendência já anunciada, vira verdade universal. Luiz Filipe Souza, que jamais pensou em ceder às entregas, cria um delivery de fine dining, com o menu Expresso Oriundi que serve sete tempos a R$ 271. E abre uma pizzaria, a Evvita. E cria um mercado virtual para vender ingredientes de pequenos produtores que usa em seus pratos, o Mercato Evvai. E até um negócio de entregas de cookies, o Blue Cookie, cujo lucro é totalmente revertido para os funcionários do salão que tiveram a renda esmigalhada pela extinção do serviço (e a taxa cobrada aos clientes, um adicional significativo ao salário).

“Dei uma pirada de ansiedade, voltei a fazer terapia, e notei que a equipe estava ansiosa. Fiz exercícios de relaxamento com todo mundo, uma coisa meio zen, e comecei a cozinhar para eles. Essa vida de chef de cozinha é a pior coisa do mundo porque você deixa de cozinhar. E um dia alguém pediu um cookie”, conta o chef sobre como nasceu seu quinto negócio — além dos citados acmia, ele também tem parte na hamburgueria Fat Cow.

Leia abaixo como Luiz Filipe Souza lidou com a crise da gastronomia e com a própria ansiedade para manter o restaurante que, em poucos anos, virou referência em São Paulo.

  • G |Este era o ano em que você surfaria a onda de todos os prêmios de 2019. Como você lidou com a frustração no âmbito pessoal?

    Luiz Filipe Souza |

    Eu tinha grandes ambições para este ano. Vinha de um período de muito amadurecimento da empresa. Começamos [o Evvai] há três anos para ser casual, tentamos fugir do fine dining, mas entendemos que não dava, tínhamos todos os prefixos e os sinais de mercado, boa expectativa da economia. Quando veio a pandemia, foi extremamente frustrante. Pessoalmente, para mim, foi assustador. Primeiro porque eu não queria passar de novo por tudo o que passamos no início da empresa, períodos duros, de vender o almoço para pagar o jantar. Segundo porque construí uma equipe capaz de executar o nosso menu em uma velocidade meteórica. Passaram muitos funcionários até chegarmos a esse time. Quando há uma crise, a primeira medida é reduzir pessoal e esse era o meu maior medo. Foram cinco meses de carregar um fardo econômico e uma responsabilidade muito pesada. Eu nunca imaginei que duraria cinco meses; foi maior que os meus piores pesadelos.

  • G |E como foi a reabertura?

    LFS |

    Estamos na quarta semana e eu estou muito positivo, estranhamente. Estou vivendo o melhor período do Evvai. Esqueçamos a parte financeira, mas em termos de entrega, de serviço, de ambiente, são tempos gloriosos. Antes eu atendia 80 pessoas; agora são 40 com reserva. Isso me dá espaço para trabalhar de uma maneira que sempre quis, atento a cada detalhe, com foco no cliente. O único problema é que, com essa fórmula, a conta ainda não fecha. E a maior tristeza é que dá 22h e eu preciso acender a luz e mandar os clientes saírem, como em festa de formatura, ou 15 anos.

  • G |Que ocupação você precisaria para fechar a conta?

    LFS |

    Em torno de 78 lugares. Lembrando que já tive 110. Meu ideal seriam 53 lugares.

  • G |Quem já reabriu tem feito muita crítica ao no-show. Como todos trabalham com reserva, quando um cliente não vai é uma parte do lucro que se perde. Você lida muito com isso?

    LFS |

    Depende do dia, na semana o no-show é maior, mas é coisa de quatro pessoas. Temos lista de espera todos os dias. O no-show é um absurdo e uma falta de educação. Quatro pessoas é 10% do meu dia que se perde. Não me chateia a parte financeira, mas tem outros clientes que poderiam ocupar esses lugares.

  • G |Sua comida ficou mais cara?

    LFS |

    Isso é inevitável, mas é uma decisão pré-pandemia. Fazemos um trabalho em cima do alimento e de reservas. Faço questão de trabalhar com produtores específicos e a comida é criada em torno dos produtos deles. E eu preciso remunerá-los, os meus funcionários e toda a cadeia de forma mais justa. Se não fizer isso agora, perco uma janela importante. Eu tinha pratos mais baratos, algumas sobremesas, que as do Outback, por exemplo, que tem uma margem maior.

     

  • G |Profissionalmente, você reagiu muito rápido à pandemia. Como foi seu planejamento?

    LFS |

    Nunca pensei em ter um delivery do Evvai, sempre me opus a isso. Mas quando você se vê diante do abismo da pandemia, foi uma resposta ao desespero. As respostas à pandemia não estão no manual da restauração, não tem resposta rápida. Eu tinha a responsabilidade de 50 e poucas famílias que ajudaram a construir o restaurante.

  • G |O quão difícil foi adaptar o restaurante de alta gastronomia para delivery?

    LFS |

    Foram fases. A primeira foi decidir fechar e em uma semana a gente subiu a loja delivery, período em que briguei com meus demônios. Na minha leitura, ninguém ia querer uma comida técnica, que fizesse pensar. Todo mundo buscava afetividade. Fui nessa linha, adaptando, pegando os ingredientes de pequeno produtor. Fiquei em pânico pensando nesses caras do queijo, do peixe… Em dois meses, se eles não tivessem vivos, eu estava ferrado. O restaurante faz seus pratos em cima do produto, perderia o sentido. Servimos coisas que nunca teríamos no salão, como strogonoff. Depois passamos à comida de funcionário, que eu passei a fazer — uma coisa triste de chef de cozinha é que deixamos de cozinhar, mas na pandemia voltei a fazer até a comida da equipe. E daí, em três meses, ao ver a equipe se acomodar tecnicamente, fiquei chateado e pensei que as pessoas já estavam em outra fase, o terror já tinha passado e o objetivo do Evvai sempre foram os momentos especiais. Ninguém deixa de comemorar o aniversário. E eu lancei o desafio de fazer um menu degustação para viajar. Pensamos no que tinha mais vocação para delivery, preparamos as receitas de maneira que chegassem aceitáveis, elegemos também os que mais fizeram sucesso na nossa história e criamos esse negócio da caixa. Como não tenho como mandar sete motoboys para as etapas, a ideia é que os sete pratos sejam abertos ao mesmo tempo como num piquenique. Mas até chegar aí foi bem difícil.

  • G |E o que você espera que aconteça daqui pra frente?

    LFS |

    É difícil dizer. As coisas estão mais estáveis, a gente aprendeu a se adaptar. E isso foi muito importante, entender que tem essa habilidade de sobreviver.

  • G |Falando em adaptação, como vê o movimento Ocupa Rua?

    LFS |

    Acho um ótimo projeto, até tardio, porque não deveria ser feito por conta da pandemia, mas antes mesmo. A vida na rua tem que ser uma coisa bem vinda, a gente tem medo de usar rua. Eu sou super a favor, há críticas sobre ser uma coisa do centro, mas se for só lá já é algo.

  • G |E as dark kitchens?

    LFS |

    Quero montar uma. Quando abro o restaurante, não consigo operar o delivery. Não tanto pela capacidade da cozinha, mas como eu vou ter motoboy na porta e cliente entrando ao mesmo tempo? Não tem nem esse espaço físico, eu não consigo administrar. Queria algo na mesma rua, a 200 metros, em que conseguisse operar com padrão de qualidade.

  • G |Você vai manter o delivery então no pós-pandemia?

    LFS |

    Não vejo porque fechar. A pandemia mudou muita coisa, uma arrogância que se perdeu. A gente acreditava que algumas coisas tinham ser servidas de um jeito específico, e isso acabou. Estamos mais easy going e preocupados com o bem-estar. Claro que não vou servir ovo frito, mas estamos menos engessados.

  • G |Como você consegue de desdobrar em cinco negócios?

    LFS |

    É a mesma empresa, parece complexo, mas não é. A Evvita é dentro do Evvai, mesmo imóvel, cozinha interligada. O Blue Cookie também. Mesma estrutura, mesmos funcionários. Lá fora são negócios diferentes, mas aqui é a mesma coisa. A gente consegue fazer mais hoje, precisávamos ficar mais inteligentes. Só o Fat Cow que é outra sociedade, mas os pães são produzidos aqui e eu faço reuniões por Skype com o time de lá.

  • G |Há críticas dos restaurantes pela falta de apoio do governo na pandemia. O que você acha que poderia ter sido feito diferente?

    LFS |

    Eu não tenho nada a criticar em relação aos chefs, cada um faz o que entende melhor do seu negócio, quem sou eu para dizer como alguém tem que fazer algo? Principalmente porque, se eu falar para fazer o que eu fiz, vai dar errado. Agora, tenho uma lista imensa sobre o governo. Com todo o respeito, nada foi feito mesmo. O único auxílio foi a linha destinada à folha de pagamento, aumentei meu endividamento para pagar funcionários. Isso não promoveu liquidez alguma. Não sou uma megaempresa multimilionária, somos um restaurante no início do lucro presumido, com faturamento médio como existem muitos. Tive muita dificuldade para conseguir reabrir o restaurante, refiz estoque, adega, nos adequamos às normas, compramos máscaras, colocamos dispenser de álcool gel, foi muito louco, muito duro. E o que o governo fez para incentivar a retomar a atividade? Nada. Entendo que a gente vive num país com economia que não se compara à Europa, aos EUA, mas em situações muito drásticas tem que ter medidas drásticas, uma economia de guerra.

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