Trecho de Livro: Uma Mulher, de Annie Ernaux — Gama Revista

Trecho de livro

Uma Mulher

Livro da vencedora do Nobel Annie Ernaux parte do luto pela morte da mãe para resgatar a história daquela que foi a mulher mais importante da sua vida      

Leonardo Neiva 19 de Abril de 2024

Pouco após a morte da mãe e todos os trâmites relacionados a ela — do inventário dos poucos pertences no hospital onde ficou internada à compra de flores e ao enterro em si —, Annie Ernaux começou a escrever. “Minha mãe morreu na segunda-feira”, narra logo na primeira linha de “Uma Mulher” (Fósforo, 2024), último livro da escritora francesa vencedora do Nobel a aportar aqui no Brasil. Mais tarde, ela admite na própria obra que levou três semanas para superar o terror de se ver botando essas poucas palavras no topo de uma folha em branco.

MAIS SOBRE O ASSUNTO
O Jovem
Paixão Simples
As Pequenas Chances

Assim como no aclamado “O Lugar” (Fósforo, 2021), onde recompôs a vida e a trajetória do pai, aqui Ernaux dá tratamento semelhante à história da mãe, “a única mulher que realmente importou para mim” e que “estava demente havia dois anos”. Continuando sua jornada pela autossociobiografia, gênero que fundou e que ajudou a consagrá-la, a autora explica que, embora, para ela, a mãe não tenha história própria, já que sempre esteve ali, o livro busca retratar a mulher real, num registro familiar e social, mítico e histórico, literário mas também abaixo da literatura.

Assim como em obras anteriores, a escritora parte de uma linguagem aparentemente neutra e do estilo conciso mas pungente ao qual seus leitores já estão acostumados. Com isso vai reunindo as peças que compõem essa mulher da classe operária, da adolescência à velhice e viuvez, quando a convivência com a filha escancara o distanciamento gerado pela ascensão social desta. O luto pela perda materna também se infiltra de maneira irremediável na narrativa, transformando a escrita ocasionalmente seca de Ernaux numa avalanche de memórias pessoais por vezes alegres, por vezes profundamente dolorosas, mas nunca indiferentes.


Na semana seguinte, passei a chorar em qualquer lugar. Ao acordar, sabia que minha mãe estava morta. Tinha sonhos pesados, mas não me lembrava de nada, apenas que ela estava neles, e morta. Eu não fazia nada além do necessário para viver, compras, comida, roupa na máquina de lavar. Muitas vezes esquecia a sequência de cada coisa, depois de descascar os legumes eu parava, só emendando o gesto seguinte — lavar os alimentos — depois de um esforço de reflexão. Ler era impossível. Uma vez, desci ao porão e a mala da minha mãe estava lá, com a carteira dela, uma bolsa colorida e lenços dentro. Fiquei prostrada diante da mala aberta. Quando me encontrava fora de casa, na cidade, era pior. Estava dirigindo e, de repente: “ela nunca mais estará em lugar nenhum do mundo”. Não conseguia mais entender o modo como as pessoas se comportavam, a atenção minuciosa no açougue, quando escolhiam determinado corte de carne, era para mim um horror.

Pouco a pouco esse estado vai desaparecendo. Ainda sinto uma satisfação ao perceber que o tempo continua frio e chuvoso, como no início do mês, quando minha mãe estava viva. E instantes de vazio a cada vez em que eu constato “não vale mais a pena” ou “não preciso mais” (fazer isso ou aquilo por ela). Alguns pensamentos deixam um buraco em mim: pela primeira vez, ela não vai ver a primavera. (Sentir a partir de agora a força das frases comuns e até mesmo dos clichês.)

Amanhã completam-se três semanas do dia do enterro. Só anteontem consegui superar o terror de escrever no alto de uma folha em branco, como o começo de um livro, e não de uma carta a alguém, “minha mãe morreu”. Também consegui olhar algumas de suas fotos. Numa delas, à beira do Sena, ela estava sentada com as pernas dobradas. É uma imagem em preto e branco, mas é como se eu visse os cabelos ruivos dela, os reflexos de seu blazer de alpaca preta.

Ao acordar, sabia que minha mãe estava morta

Vou continuar escrevendo sobre a minha mãe. Ela é a única mulher que realmente importou para mim e estava demente havia dois anos. Talvez eu devesse esperar que a doença e a morte dela se dissolvessem no percurso passado da minha vida, como os outros acontecimentos, a morte do meu pai e a minha separação, de modo que eu pudesse ganhar a distância que facilita a análise das lembranças. Mas nesse momento não sou capaz de fazer outra coisa.

É uma empreitada difícil. Para mim, minha mãe não tem história. Ela sempre esteve aqui. Ao falar dela, meu primeiro movimento é fixá-la em imagens que não trazem uma dimensão temporal: “ela era agressiva”, “era uma mulher muito intensa”, e evocar de modo desordenado cenas em que ela aparecia. Assim, só encontro a mulher do meu imaginário, a mesma que, há alguns dias, em meus sonhos, vejo outra vez viva, sem idade definida, num ambiente de tensão que lembra filmes angustiantes. Gostaria de capturar também a mulher que existiu fora de mim, a mulher real, nascida num bairro rural de um vilarejo na Normandia e falecida na unidade geriátrica de um hospital no subúrbio de Paris. O que eu espero escrever de mais exato se situa, sem dúvida, na articulação entre o familiar e o social, o mito e a história. Meu projeto é de natureza literária, pois trata de buscar uma verdade sobre a minha mãe que só pode ser alcançada por meio das palavras. (Ou seja, nem as fotos, nem minhas lembranças, nem os testemunhos da família podem me dar esta verdade.) Mas quero permanecer, de certa forma, abaixo da literatura.

Yvetot é uma cidade fria, construída sobre um planalto exposto ao vento, entre Rouen e o Havre. No começo do século, era o centro comercial e administrativo de uma região totalmente agrícola e ficava nas mãos de grandes proprietários. Meu avô, carroceiro numa fazenda, e minha avó, que trabalhava em casa como tecelã, se instalaram ali alguns anos depois de se casarem. Os dois vinham de um vilarejo vizinho, a três quilômetros dali. Alugaram uma casinha com pátio, do outro lado da estrada de ferro, na periferia, uma zona rural de limites indefinidos, entre os últimos bares perto da estação e as primeiras plantações de colza. Minha mãe nasceu lá, em 1906, a quarta de seis filhos. (Ela tinha orgulho em dizer: “eu não nasci no campo”.)

Para mim, minha mãe não tem história. Ela sempre esteve aqui

Produto

  • Uma Mulher
  • Annie Ernaux (trad. Marília Garcia)
  • Fósforo
  • 64 páginas

Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos da Gama, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação