Trecho de livro

Recitatif

Primeira autora negra vencedora do Nobel, Toni Morrison propõe em seu único conto um enigma sobre preconceito, identidade e códigos raciais

Leonardo Neiva 05 de Dezembro de 2025

Até quem já conhece bem a obra da escritora norte-americana Toni Morrison (1931-2019) e leu alguns de seus onze romances, como “Amada” (Companhia das Letras, 2007), vencedor do Pulitzer, ou “O Olho Mais Azul” (idem, 2019), talvez ainda não esteja familiarizado com “Recitatif” (2025). O livro, lançado só agora no Brasil, traz simplesmente o único conto publicado pela autora ao longo de sua prolífica carreira literária.

“O fato de existir apenas um conto escrito por Morrison parece ser algo consistente com sua obra. Morrison não produziu nenhum escrito apressado nem ‘ensaios ocasionais’, nenhum romance tapa-buraco, não se mexeu sem sair do lugar nem se desviou da via principal”, analisa a escritora Zadie Smith no posfácio do livro. Primeira autora negra a receber um Nobel de Literatura, Morrison de fato tinha um projeto claro e definido para seu conto. O que ela propõe é uma espécie de desafio para o leitor: desvendar os códigos raciais das duas protagonistas da história.

“Recitatif” se inicia com o encontro entre duas garotas, Twyla e Roberta, que se tornam amigas por acaso quando colocadas pelas mães num abrigo para crianças e jovens. Depois de separadas, a história mostra como ambas acabam se reunindo outras três vezes ao longo da vida, nas quais as diferenças de raça e classe social entre as duas convergem com o forte laço de companheirismo que se criou ao longo de uma infância difícil.

A grande jogada da autora é que ela suprime do conto uma informação crucial — qual personagem é negra e qual é branca —, deixando para o leitor navegar entre as ambiguidades que supostamente tornariam possível “desvendar o mistério”. Mas, ao contrário de um enigma que poderia soar até infantil, o que a escritora realmente sugere é uma reflexão sobre identidade e os marcadores sociais que costumamos costurar em cada indivíduo, e que compõem a base dos nossos preconceitos sobre o mundo. Com tradução do poeta Floresta, “Recitatif” é uma leitura cativante, por vezes irônica, por vezes angustiante, como somente Morrison seria capaz de arquitetar.


Minha mãe dançava a noite toda e a da Roberta era doente. Foi por isso que nos colocaram no St. Bonny. As pessoas querem te abraçar quando você diz que mora num abrigo, mas não é tão ruim assim. Não era como aqueles quartos grandes e compridos com mil camas de Bellevue. Eram quatro em cada quarto, e quando Roberta e eu chegamos havia uma escassez de crianças do Estado, então éramos as únicas no 406 e podíamos trocar de cama se quiséssemos. E queríamos. Trocávamos de cama toda noite e nos quatro meses que passamos ali nunca escolhemos uma cama permanente.

Mas não começou assim. No momento em que entrei e Bozo nos apresentou, eu fiquei meio enjoada. Uma coisa era ser tirada da cama bem cedo de manhã — e outra era estar presa num lugar estranho com uma menina de outra raça. E Mary, minha mãe, estava certa. De vez em quando ela parava de dançar por tempo suficiente para me dizer alguma coisa importante e uma das coisas que ela disse é que aquelas pessoas não lavavam o cabelo e tinham um cheiro estranho. E Roberta com certeza era assim. Cheirava estranho, quero dizer. Então quando Bozo (ninguém nunca a chamava de sra. Itkin, como ninguém dizia St. Bonaventure), quando ela disse “Twyla, esta é Roberta. Roberta, esta é Twyla. Sejam legais uma com a outra”, eu disse: “Minha mãe não vai gostar de saber que a senhora me botou aqui”.

“Bom”, disse Bozo. “Talvez ela devesse vir aqui te buscar e te levar pra casa.”

Uma coisa era ser tirada da cama bem cedo de manhã — e outra era estar presa num lugar estranho com uma menina de outra raça

Isso é que é ruindade! Se Roberta tivesse dado risada, eu a teria matado, mas ela não riu. Ela só foi até a janela e ficou de costas para nós.

“Olhe pra cá”, começou a Bozo. “Não seja malcriada. Agora, Twyla. Roberta. Quando vocês ouvirem o sinal, é hora de jantar. Desçam até o primeiro andar. Se tiver briga, não tem filme.” E então, para garantir que soubéssemos o que estava em jogo: “O mágico de Oz”.

Roberta deve ter pensado que eu quis dizer que a minha mãe ficaria brava por eu ter sido mandada para o abrigo. E não porque eu dividiria o quarto com ela, pois, assim que Bozo saiu, ela veio até mim e disse: “Sua mãe também está doente?”.

“Não”, eu disse. “Ela só gosta de passar a noite dançando.”

“Ah.” Roberta fez que sim com a cabeça e eu gostei da forma como ela entendia as coisas rápido. Então, por ora, não importava que nós duas fôssemos como sal e pimenta ali paradas, e era assim que as outras crianças nos chamavam às vezes. Nós tínhamos oito anos e estávamos sempre abaixo da média. Eu porque não conseguia me lembrar do que lia nem do que a professora dizia. E Roberta porque ela não sabia ler e nem sequer ouvia a professora. Ela não era boa em nada, mas arrasava no jogo das cinco-marias: joga pega joga pega joga pega.

Tínhamos sido abandonadas. Até as porto-riquenhas de Nova York e as indígenas nos ignoravam

Não gostamos muito uma da outra logo de cara, mas ninguém mais queria brincar com a gente porque não éramos órfãs de verdade com lindos paizinhos mortos lá no céu. Tínhamos sido abandonadas. Até as porto-riquenhas de Nova York e as indígenas nos ignoravam. Tinha meninas de todos os tipos ali, negras, brancas e até duas coreanas. Pelo menos a comida era boa. Era o que eu achava. Roberta odiava e deixava quase tudo no prato: salsichas, purê de batatas — e até gelatina com salada de frutas — e não se importava de eu comer o que ela não queria. A ideia que Mary tinha de janta era pipoca e achocolatado. Para mim, purê de batatas e duas salsichas eram um banquete de Ação de Graças.

St. Bonny não era tão ruim assim. As meninas mais velhas do segundo andar implicavam com a gente às vezes. Mas só isso. Elas passavam batom e lápis de olho e dançavam balançando os joelhos enquanto assistiam televisão. Deviam ter uns quinze, dezesseis anos. Eram meninas de rua que tinham fugido de casa, assustadas em sua maioria. Umas pobrezinhas que sobreviveram aos tios, mas que pareciam duronas e más para nós. Deus, como elas pareciam más. Os funcionários do abrigo tentavam mantê-las separadas das mais novas, mas às vezesm elas nos pegavam olhando para elas no pomar, onde dançavam juntas ouvindo rádio. Elas disparavam atrás da gente e puxavam nosso cabelo ou torciam nossos braços. Tínhamos medo delas, Roberta e eu, mas nenhuma queria que a outra soubesse disso.

Elas disparavam atrás da gente e puxavam nosso cabelo ou torciam nossos braços. Tínhamos medo delas, Roberta e eu, mas nenhuma queria que a outra soubesse disso

Produto

  • Recitatif
  • Toni Morrison (trad. floresta)
  • Companhia das Letras
  • 120 páginas

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