Sob Efeito de Plantas
Em novo livro, americano Michael Pollan investiga o impacto de plantas como ópio e cafeína sobre a nossa consciência e a própria vida em sociedade
Já parou para pensar na quantidade de plantas que você consome no seu cotidiano? Algumas delas, a exemplo da que está presente no café que você toma todos os dias de manhã para espantar a sonolência, estão tão integradas à vida em sociedade que acabamos nos esquecendo que elas alteram nossa consciência de forma relevante. Em seu novo livro, “Sob Efeito de Plantas” (Intrínseca, 2023), o escritor e jornalista americano Michael Pollan investiga especificamente a história e os efeitos de três drogas vegetais bem conhecidas: o ópio, a cafeína e a mescalina.
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Especializado nos pontos em que natureza e cultura colidem, desde o que cultivamos até o que colocamos em nossos pratos, Pollan já falou à Gama sobre sua experiência com psicodélicos e como eles podem trazer uma nova perspectiva à vida. Agora ele mergulha no universo dessas drogas que são parte intrínseca da história da humanidade e questiona por que nos esforçamos tanto para buscar substâncias que alteram nossa consciência para depois limitar seu uso. Fala também de como uma planta aparentemente inofensiva como o café altera nossa percepção e modo de agir com tanta pontualidade que hoje sair do nosso estado normal passou a significar deixar de tomar uma xícara fumegante todos os dias.
“De maneira muito semelhante a um alimento, uma droga psicoativa é menos uma coisa – sem um cérebro humano, é inerte – do que um relacionamento; é preciso tanto uma molécula quanto uma mente para fazer algo acontecer”, considera o autor na introdução da obra. Ao fazer experimentos sobre os efeitos desse relacionamento na própria pele, ou melhor, no próprio cérebro, Pollan tira conclusões originais a respeito de substâncias que estão no planeta desde que nos entendemos por gente, e se aprofunda naquilo que nossa forma de enxergá-las revela sobre a humanidade.
Cafeína
Talvez a frase de abertura não seja o melhor lugar para admitir isso, no exato momento em que você está decidindo se vai me conceder uma ou duas horas de atenção, mas, no meio da pesquisa para esta história, tive uma crise que me fez duvidar que o assunto fosse interessante, até para mim, dono da ideia supostamente brilhante. Comecei a duvidar que um longo artigo sobre cafeína valesse o tempo e o esforço necessários para relatar e escrever, e me perguntei como, em algum momento, eu tinha pensado o contrário. Eu estava em apuros. Nós estávamos. Embora você tenha opção, eu não tinha: você, ao menos, pode parar de ler agora.
Antes dessa crise, eu vinha me arrastando alegremente, conduzindo entrevistas, lendo incontáveis livros de ciência (descobri que a cafeína é um dos compostos psicoativos mais estudados que existe) e história (cujo curso foi mudado de forma decisiva no Ocidente pela introdução da cafeína); viajando para a América do Sul para visitar uma fazenda de café; provando todos os tipos de bebidas com cafeína, quando de repente, como o Coiote no desenho do Papa-Léguas, por acaso olhei para baixo e percebi que não havia mais estrada sob meus pés, apenas uma vasta extensão vazia de inutilidade até onde a vista alcançava. O que diabos eu estava fazendo?
Ou talvez fosse mais preciso perguntar: o que eu não estava fazendo? Porque algo estava acontecendo comigo na época que com certeza tem relação com a perda de interesse nesse projeto: eu havia parado de consumir cafeína. Abrupta e completamente.
Depois de anos tomando uma xícara grande de café pela manhã, seguida de várias de chá-verde durante o dia, e o ocasional cappuccino depois do almoço, larguei a cafeína e estava passando pela crise de abstinência. Não era algo que eu realmente quisesse fazer, mas cheguei à relutante conclusão de que a apuração em curso exigia isso. Vários dos especialistas que eu estava entrevistando sugeriram que não seria possível entender o papel da cafeína na minha vida — seu poder invisível, mas penetrante — sem me abster dela e, em seguida, presumivelmente, voltar a consumi-la. Roland Griffiths, um dos principais pesquisadores mundiais de drogas que alteram o humor, e o principal responsável pela inclusão do diagnóstico de “abstinência de cafeína” no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (ou o DSM-5), a bíblia dos diagnósticos psiquiátricos, me disse que não havia começado a entender a própria relação com a cafeína até que parou de consumi-la e conduziu uma série de autoexperimentos. Ele me incentivou a fazer o mesmo.
A ideia é que não é possível descrever o veículo que estamos dirigindo sem primeiro parar, sair e dar uma boa olhada nele pelo lado de fora. É provável que isso se aplique a todas as drogas psicoativas, mas é especialmente verdadeiro no caso da cafeína, uma vez que a qualidade particular de consciência que ela promove no usuário regular parece normal e transparente, em vez de alterada ou distorcida. Na verdade, para a maioria de nós, ter certa quantidade de cafeína no organismo, em grau maior ou menor, se tornou o patamar normal da consciência humana. Cerca de 90% dos seres humanos ingerem cafeína com regularidade, o que faz dela a droga psicoativa mais usada no mundo e a única que oferecemos às crianças (em geral na forma de refrigerante). São raras as pessoas que pensam na cafeína como uma droga, e mais raras ainda as que veem nosso uso diário como um vício. Sua ingestão é tão difundida que é fácil ignorar o fato de que ter cafeína no organismo não é um patamar normal de estado de consciência, mas, na verdade, um estado alterado. Por acaso é um estado que praticamente todos nós compartilhamos, o que o torna invisível.
90% dos seres humanos ingerem cafeína com regularidade, o que faz dela a droga psicoativa mais usada no mundo e a única que oferecemos às crianças (em geral na forma de refrigerante)
Portanto, decidi que, para o bem do artigo — ou seja, por você, caro leitor –, faria uma autoexperiência de abstinência. Mas o que jamais me ocorreu ao começar o experimento é que, ao abandonar a cafeína, estaria minando minha capacidade de contar a história da cafeína, um nó que não sabia ao certo como desatar.
Talvez eu devesse ter previsto o problema. Os cientistas explicaram, e eu observei, os previsíveis sintomas da abstinência de cafeína: dor de cabeça, fadiga, letargia, dificuldade de concentração, diminuição da motivação, irritabilidade, angústia intensa, perda de confiança (!) e disforia, que é o exato oposto de euforia. Eu tinha todos eles, em um grau ou outro, mas, sob a rubrica enganosamente branda de “dificuldade de concentração”, esconde-se nada menos do que uma ameaça existencial ao trabalho do escritor. Como esperar escrever algo quando é impossível se concentrar? Eis o curso de ação de praticamente todos os escritores: pegue a multiplicidade do mundo e nossa experiência nele, literalmente concentre-as em proporções administráveis e, depois, force isso pelo buraco da agulha gramatical, palavra por palavra. É um milagre que alguém sequer consiga tal proeza intelectual, ou ao menos é o que parece depois de três dias de abstinência de cafeína. Mas antes mesmo que possa esperar mensurar e enfrentar esse penhasco de impossibilidade, o escritor precisa reunir a confiança — o senso de ação e poder — necessária para prosseguir. Pouco importa se é uma ilusão, mas a sensação de que você tem na mão uma história que o mundo precisa ouvir, e que só você tem o que é preciso para contá-la, é exatamente o que você precisa para contá-la. Perdoe a metáfora masculina, mas muita coisa depende dessa tumescência mental. Descobri que ela, por sua vez, depende em grande parte da 1,3,7 trimetilxantina, a minúscula molécula orgânica conhecida pela maioria de nós como cafeína.
O primeiro dia da minha abstinência, que começou no dia 10 de abril, foi de longe o mais desafiador, a ponto de a perspectiva de escrever, ou mesmo só ler, se mostrar inútil. Eu havia adiado esse dia sombrio o máximo que pude, inventando as desculpas que todo viciado inventa. “Essa semana vai ser estressante”, dizia para mim mesmo. “Acho que esse não é o melhor momento para largar o café.” Mas é óbvio que nunca haveria um “bom momento” para fazê-lo — sempre havia um motivo pelo qual eu tinha que estar focado e não podia ter os sintomas “de gripe” que os pesquisadores haviam dito que me aguardavam. “Quero fazer isso direito”, como o cantor country Gillian Welch cantarolava, “mas não agora”. E agi assim, dia após dia. A procrastinação no início de qualquer projeto de escrita não é algo incomum para mim, mas essa durou semanas. Uma hora, porém, eu me vi encurralado pelo fato de que não havia mais apuração a ser feita e tudo que restava entre mim e a escrita era parar de tomar café — o ato que tornaria a escrita impossível.
Escolhi uma data e decidi respeitá-la.
Então a manhã do dia 10 de abril, uma quarta-feira, chegou. De acordo com os pesquisadores que entrevistei, o processo de abstinência havia começado à noite, enquanto eu dormia, durante a região do “vale” no gráfico dos efeitos diurnos da cafeína. A primeira xícara de chá ou café do dia deve seu poder — sua alegria! — menos às suas propriedades de promover euforia e estímulo do que ao fato de estar suprimindo os primeiros sintomas da abstinência. Isso é parte do lado traiçoeiro da cafeína. Seu modo de ação, ou “farmacodinâmica”, se encaixa perfeitamente aos ritmos do corpo humano; a xícara de café matinal chega bem a tempo de barrar a angústia mental iminente convocada pela xícara de café do dia anterior. Todos os dias a cafeína se coloca como solução ideal para o problema que ela mesma cria. Brilhante!
A xícara de café matinal chega bem a tempo de barrar a angústia mental iminente convocada pela xícara de café do dia anterior
Meu ritual matutino com Judith — depois do desjejum e exercícios em casa — envolve uma “caminhada até o café” de oitocentos metros, como os corretores de imóveis gostam de dizer hoje em dia. Por alguma razão nunca fazemos café em casa. Em vez disso, compramos uma xícara no Cheese Board, uma padaria e queijaria local, e bebemos no copo de papelão aninhado em sua cinta de papelão quentinha. (Nada ecológico, eu sei.) Esperando me enganar, fiz questão de manter tudo igual no ritual da manhã — a caminhada rua abaixo e uma bebida quente aninhada num copo de papel — exceto que quando cheguei ao caixa me forcei a pedir um chá de hortelã em vez do meu copo grande meio descafeinado. (Sim, eu era relativamente chato no meu consumo de cafeína.) Depois de anos do “de sempre”, o barista estranhou meu pedido. “Tentando parar”, expliquei, me desculpando.
Naquela manhã, a adorável dispersão da lentidão mental que a primeira dose de cafeína traz para a consciência não chegou. A lentidão se instalou em mim e não ia embora. Não que eu me sentisse mal — nunca tive uma dor de cabeça séria –, mas durante todo o dia fiquei envolto em uma certa névoa, como se um véu tivesse se colocado entre mim e a realidade, um tipo de filtro que absorvia alguns comprimentos de onda de luz e som. Escrevi no meu caderno: “A consciência parece menos transparente do que o normal, como se o ar estivesse mais denso, e também parece mais lenta, incluindo a percepção.” Consegui trabalhar um pouco, mas distraído. “Eu me sinto como um lápis sem ponta”, escrevi. “Os acontecimentos periféricos invadem e não podem ser ignorados. Não consigo me concentrar por mais de um minuto. É assim que é ter TDAH?”
Ao meio-dia eu estava de luto pela morte da cafeína na minha vida por um período indeterminado de tempo. Sentindo muita falta daquilo que Judith chama de sua “xícara de otimismo”; a mesma xícara que Alexander von Humboldt, o grande naturalista alemão, chamou de “sol concentrado”. (Humboldt tinha um papagaio chamado Jacob que só sabia dizer uma coisa: “Mais café, mais açúcar.”) Embora àquela altura eu tivesse me contentado com muito menos do que otimismo. “Do que sinto falta”, escrevi, “não é nada parecido com um estado de intoxicação ou euforia, apenas a simples dádiva do meu eu normal da consciência diária. Essa é a minha nova consciência? Meu Deus, tomara que não”.
No decorrer dos dias seguintes definitivamente comecei a me sentir melhor — o véu foi retirado –, mas ainda não era eu mesmo e o mundo não voltou ao normal. No fim da semana cheguei ao ponto em que achava que já não podia mais culpar a abstinência de cafeína pelo meu estado mental (e pelos resultados decepcionantes no trabalho); contudo, neste novo normal o mundo ainda parecia mais chato para mim. Eu parecia chato também. As manhãs eram a pior parte. Passei a ver como a cafeína é essencial para o trabalho diário de nos recompormos após o desgaste da consciência durante o sono. Essa recomposição de si — o processo de apontar diariamente nosso lápis mental — demorava muito mais tempo do que o normal e nunca pareceu completa. Comecei a pensar na cafeína como um ingrediente essencial para a construção do ego. O meu agora estava com deficiência desse nutriente, o que talvez explique por que a ideia de escrever este artigo — na verdade, de algum dia voltar a escrever — me parecia impossível.
As manhãs eram a pior parte. Passei a ver como a cafeína é essencial para o trabalho diário de nos recompormos após o desgaste da consciência durante o sono
- Sob Efeito de Plantas
- Michael Pollan
- Intrínseca
- 320 páginas
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