Trecho de Livro: Paixão Simples, de Annie Ernaux — Gama Revista

Trecho de livro

Paixão Simples

Em nova ode aos apaixonados, a vencedora do Nobel Annie Ernaux reconta a força e radicalidade do sentimento que viveu por um homem casado

Leonardo Neiva 10 de Abril de 2023

Assim como em “O Jovem” (Fósforo, 2022), recém-lançado aqui no Brasil, a escritora francesa Annie Ernaux busca em “Paixão Simples” (Fósforo, 2023) retratar de maneira íntima sua vivência de um relacionamento intenso, que deixou marcas profundas. Dessa vez, no entanto, em vez da relação com um homem muito mais jovem, o foco recai sobre o sentimento por um homem casado, quando, já divorciada e mãe de dois filhos crescidos, a vencedora do Nobel viveu em sua radicalidade a experiência de se apaixonar.

MAIS SOBRE O ASSUNTO
O Jovem
Dez livros de 2022 para ler nas férias
Gal, Ernaux e Hilda Hilst

Publicada originalmente em 1992, a obra dá conta de como esse estado de enamoramento afetou a rotina, sua maneira de ver o mundo e até sua racionalidade, tomados todos por uma espécie de pensamento mágico. “Minha conduta era totalmente artificial. As únicas ações que envolviam minha vontade, meu desejo e qualquer coisa da ordem da inteligência humana (prever, avaliar os prós e contras, as consequências) tinham todas relação com esse homem”, descreve em cores vivas no trecho que Gama selecionou abaixo, com tradução de Marília Garcia.

Mais um capítulo do impressionante projeto de Ernaux de reviver na escrita e na literatura passagens marcantes de sua vida, “Paixão Simples” é também uma ode ao ato de se apaixonar, sem grandes reprimendas ou julgamentos. Assim como nos retratos que fez de outros aspectos de sua vida, como o aborto realizado na juventude e a relação conturbada com a família, a narrativa — como de praxe, bastante curta e concisa — compreende também o rastro que uma paixão tão intensa deixou em seu dia a dia. Uma cicatriz marcada pelo retorno do tempo, que havia desaparecido na mente apaixonada, num momento em que os dias, semanas, meses e anos passam a ser lembrados de acordo com a data em que ele, o grande foco da paixão, foi embora.


Desde setembro do ano passado, não fiz outra coisa além de esperar por um homem: que ele me telefonasse e viesse à minha casa. Eu ia ao mercado, ao cinema, levava a roupa para a lavanderia, corrigia trabalhos, lia, agia exatamente como antes, mas só conseguia seguir em frente porque estava muito acostumada a fazer isso tudo. A impressão que eu tinha, sobretudo quando falava, era de estar vivendo no automático. As palavras e as frases, o próprio riso, formavam-se em minha boca sem a participação efetiva da minha reflexão ou vontade. Lembro apenas por alto dos meus afazeres, dos filmes que via, das pessoas que encontrava. Minha conduta era totalmente artificial. As únicas ações que envolviam minha vontade, meu desejo e qualquer coisa da ordem da inteligência humana (prever, avaliar os prós e contras, as consequências) tinham todas relação com esse homem:

ler no jornal os artigos sobre seu país (ele era estrangeiro)
escolher a roupa e a maquiagem
escrever cartas para ele
trocar o lençol da cama e colocar flores no quarto
anotar o que não podia esquecer de lhe dizer, no próximo encontro, que pudesse ser do interesse dele
comprar uísque, frutas, petiscos para comermos juntos à noite
imaginar em qual cômodo faríamos amor quando ele chegasse.

Ao conversar com outras pessoas, os únicos assuntos que rompiam minha indiferença estavam relacionados a esse homem, ao trabalho dele, ao país de onde vinha

Ao conversar com outras pessoas, os únicos assuntos que rompiam minha indiferença estavam relacionados a esse homem, ao trabalho dele, ao país de onde vinha, aos lugares que conhecia. A pessoa que falava comigo não desconfiava de que meu súbito interesse por suas palavras não tinha relação com o jeito como ela contava, tampouco com o assunto em si, mas com o fato de que um dia, dez anos antes de eu conhecê-lo, numa viagem a trabalho a Havana, A. poderia ter entrado justo naquela boate, a Fiorendito, que agora meu interlocutor descrevia com minúcia, estimulado por minha escuta atenta. Da mesma forma que, ao ler, as frases que me prendiam diziam respeito a relacionamentos entre homens e mulheres. Parecia que elas me ensinavam alguma coisa sobre A. e davam um sentido definitivo àquilo em que eu queria acreditar. Assim, ao ler que “quando amamos fechamos os olhos ao beijar”, em Vida e destino, de Grossman, eu supunha que A. me amava porque me beijava assim. Em seguida, o resto do livro se tornava para mim o mesmo que todas as outras atividades no último ano, apenas um meio de passar o tempo entre um encontro e outro.

O único futuro que me aguardava era o próximo telefonema dele marcando um horário. Eu tentava sair o menos possível, salvo para os compromissos de trabalho — cujos horários ele conhecia –, sempre temendo perder uma ligação dele durante minha ausência. Também evitava usar o aspirador ou o secador de cabelo, pois poderiam me impedir de ouvir o toque do telefone. E quando ele tocava, me tomava de assalto uma esperança que, no geral, durava apenas o tempo de pegar lentamente o aparelho e dizer “alô”. Ao descobrir que não era ele, a frustração era tão intensa que na mesma hora eu passava a detestar a pessoa do outro lado da linha. Assim que ouvia a voz de A., minha espera indefinida, dolorosa, certamente ciumenta, evaporava tão rápido que eu tinha a sensação de que estivera louca e, de repente, voltara ao normal. Era chocante perceber, no fundo, a insignificância da voz dele e a importância desmedida que ela assumia na minha vida.

O único futuro que me aguardava era o próximo telefonema dele marcando um horário. Eu tentava sair o menos possível, salvo para os compromissos de trabalho, sempre temendo perder uma ligação

Produto

  • Paixão Simples
  • Annie Ernaux
  • Fósforo
  • 64 páginas

Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos da Gama, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação