Trecho de Livro: O Gaucho Insofrível, de Roberto Bolaño — Gama Revista

Trecho de livro

O Gaucho Insofrível

Em livro concluído pouco antes de sua morte, o escritor chileno Roberto Bolaño aborda degradação e finitude em cinco contos e duas conferências

Leonardo Neiva 19 de Janeiro de 2024

Em julho de 2003, pouco antes de seguir para o hospital, na internação que acabaria culminando em sua morte, o escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) fez uma visita à sua editora em Barcelona. Levava na mochila um disquete com os últimos textos que tinha escrito. Sua intenção era simples: a editora publicaria o livro em seguida, dando-lhe alguma segurança financeira no período após o transplante de fígado que precisava fazer com urgência. No entanto, a grave hemorragia que atingiu Bolaño naquela mesma madrugada interrompeu seus planos, acabando por matar apenas duas semanas depois um dos maiores nomes da literatura latino-americana do século 21.

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Aqueles cinco contos de ficção e duas conferências que o escritor carregava em seu disquete finalmente chegam ao Brasil em “O Gaucho Insofrível” (Companhia das Letras, 2024). E a degradação, o envelhecimento e a morte estão impressos em boa parte das páginas do livro. Seja nos cruéis assassinatos investigados pelo protagonista do conto “O policial dos ratos”, na religiosidade que permeia o encontro entre um adolescente e um serial killer em “Dois contos católicos” ou na recusa de um velho advogado a fazer parte de uma sociedade que ele não mais compreende, na história que dá título ao livro.

Numa das conferências que encerram a obra, Bolaño também fala sem meias palavras sobre o processo de descoberta e a relação com a prolongada doença que enfrentou por mais de uma década. Na outra, disseca com ironia e um humor seco a mediocridade da literatura e dos leitores contemporâneos, numa reflexão da qual nenhum literato fica a salvo — nem ele mesmo. Um livro repleto das características literárias e narrativas que marcaram sua carreira, “O Gaucho Insofrível” pode não ter sido concebido assim, mas soa, na classificação do diário espanhol La Vanguardia, como “um verdadeiro testamento criativo e estético” de Bolaño.


O gaucho insofrível

Na opinião daqueles que o conheceram intimamente, Héctor Pereda teve duas virtudes acima de tudo: foi um cuidadoso e terno pai de família e um advogado irrepreensível, de comprovada honradez, em um país e em uma época em que a honradez não estava exatamente na moda. Exemplos da primeira são o Bebe e a Cuca Pereda, seus filhos, que tiveram uma infância e uma adolescência felizes e que em seguida, carregando na intensidade da acusação em questões práticas, jogaram na cara de Pereda que ele lhes sequestrou a realidade tal qual era. De seu ofício de advogado, pouco é o que se pode dizer. Fez dinheiro e fez mais amizades do que inimizades, o que não é pouco, e quando esteve em suas mãos ser juiz ou se candidatar como deputado por um partido, preferiu, sem titubear, a promoção judicial, em que iria ganhar, como se sabe, muito menos dinheiro do que com certeza ganharia nas lidas da política.

Ao cabo de três anos, porém, decepcionado com a magistratura, abandonou a vida pública e se devotou, ao menos durante um tempo, que talvez tenham sido anos, à leitura e às viagens. É claro que também houve uma sra. Pereda, de solteira Hirschman, de quem o advogado, segundo contam, esteve loucamente enamorado. Há fotos da época que atestam isso: em uma delas se vê Pereda, de terno preto, bailando um tango com uma mulher loura quase platinada; a mulher olha para a objetiva da câmera e sorri, e os olhos do advogado, como os olhos de um sonâmbulo ou de um carneiro, olham apenas para ela. Desgraçadamente a sra. Pereda faleceu de forma repentina, quando a Cuca tinha cinco anos e o Bebe, sete. Viúvo jovem, o advogado jamais voltou a se casar, embora tivesse amigas (nunca namoradas) bastante notórias em seu círculo social, que cumpriam, ademais, com todos os requisitos para se converterem nas novas sras. Pereda.

Quando os dois ou três amigos íntimos do advogado lhe perguntavam a respeito, este invariavelmente respondia que não queria o peso (insuportável, segundo sua expressão) de arranjar uma madrasta para seus rebentos. Para Pereda, o grande problema da Argentina, da Argentina daqueles anos, era precisamente o problema da madrasta. Nós argentinos, dizia, não tivemos mãe ou nossa mãe foi invisível ou nossa mãe nos abandonou na porta do orfanato. Madrastas, por outro lado, tivemos demasiadas e de todas as cores, começando pela grande madrasta peronista. E concluía: sabemos mais de madrastas do que qualquer outra nação latino-americana.

Nós argentinos, dizia, não tivemos mãe (…). Madrastas, por outro lado, tivemos demasiadas e de todas as cores, começando pela grande madrasta peronista

Sua vida, apesar de tudo, era uma vida feliz. É difícil, dizia, não ser feliz em Buenos Aires, que é a mescla perfeita de Paris e Berlim, apesar de que, caso se aguce a vista, está mais para a mescla perfeita de Lyon e Praga. Todos os dias se levantava na mesma hora em que seus filhos, com quem tomava café da manhã e que depois deixava no colégio. Dedicava o resto da manhã à leitura da imprensa, invariavelmente lia ao menos dois jornais, e depois de fazer um lanche às onze (composto basicamente de carne e embutidos, pão francês com manteiga e dois ou três copos de vinho nacional ou chileno, salvo nas ocasiões especiais em que o vinho, obrigatoriamente, era francês), dormia uma sesta até a uma da tarde. A refeição, que fazia sozinho na enorme sala de jantar vazia, lendo um livro e sob a observação distraída da velha empregada e dos olhos em branco e preto de sua mulher defunta, que o olhava das fotos enquadradas em molduras de prata trabalhada, era leve: uma sopa, um pouco de peixe e um pouco de purê, que deixava esfriar. Às tardes repassava com seus filhos as lições do colégio ou assistia em silêncio às aulas de piano da Cuca e às aulas de inglês e francês do Bebe, que dois professores de sobrenome italiano iam lhes dar em casa. Às vezes, quando a Cuca aprendia a tocar algo inteiro, acudiam a empregada e a cozinheira para ouvi-la, e o advogado, transido de orgulho, as escutava murmurar palavras elogiosas, que a princípio lhe pareciam desmedidas mas que logo, depois de pensar duas vezes, pareciam-lhe acertadíssimas. À noite, depois de dar boa-noite a seus filhos e relembrar pela enésima vez a suas empregadas que não abrissem a porta para ninguém, partia para seu café favorito, na Corrientes, onde podia ficar até a uma, não mais do que isso, escutando seus amigos ou os amigos de seus amigos, que falavam de coisas que ele desconhecia e das quais suspeitava que, caso conhecesse, o aborreceriam soberanamente, e depois se retirava para casa, onde todos dormiam.

Um dia, porém, os filhos cresceram, e primeiro a Cuca se casou, indo viver no Rio de Janeiro, e depois o Bebe se aplicou à literatura, quer dizer, triunfou na literatura, converteu-se em um autor de sucesso, algo que enchia de orgulho Pereda, que lia todas e cada uma das páginas que o filho caçula publicava, o qual ainda permaneceu em casa durante uns anos (onde estaria melhor?), e então, como fizera sua irmã antes dele, alçou voo.

Podia ficar até a uma escutando seus amigos, que falavam de coisas que ele desconhecia e das quais suspeitava que, caso conhecesse, o aborreceriam soberanamente

A princípio, o advogado tentou se resignar à solidão. Teve um relacionamento com uma viúva, fez uma longa viagem pela França e pela Itália, conheceu uma mocinha chamada Rebeca, por fim se conformou em ordenar sua vasta e desordenada biblioteca. Quando o Bebe voltou dos Estados Unidos, onde trabalhou durante um ano em uma universidade, Pereda se convertera em um homem prematuramente envelhecido. Preocupado, o filho se esforçou para não deixá-lo só e às vezes
iam ao cinema ou ao teatro, e outras vezes o obrigava (apenas, porém, no princípio) a comparecer com ele às tertúlias literárias que organizavam na cafeteria El Lápiz Negro, onde os autores laureados com algum prêmio municipal dissertavam longamente sobre os destinos da pátria. Pereda, que nessas tertúlias nunca abriu a boca, começou a se interessar pelo que diziam os colegas de seu filho. Quando falavam de literatura, francamente se aborrecia. Para ele, os melhores escritores da Argentina eram Borges e seu filho, e tudo o que se acrescentasse a esse respeito sobrava. Mas quando falavam de política nacional e internacional, o corpo do advogado se tensionava como se estivessem lhe aplicando uma descarga elétrica. A partir de então, seus hábitos mudaram. Começou a se levantar cedo e a procurar nos velhos livros de sua biblioteca algo que nem ele mesmo sabia o que era. Passava as manhãs lendo. Decidiu abandonar o vinho e as comidas demasiado fortes, pois compreendeu que as duas coisas empanzinavam o entendimento. Seus hábitos de higiene também mudaram. Já não se arrumava como antes para sair à rua. Não demorou a deixar de tomar banho diariamente. Um dia, saiu para ler o jornal em um parque
sem pôr gravata. Aos seus velhos amigos de sempre, se tornava custoso reconhecer no novo Pereda o antigo e em todos os aspectos irretocável advogado. Um dia, se levantou mais nervoso do que de costume. Almoçou com um juiz aposentado e com um jornalista aposentado e durante toda a refeição não parou de rir. No fim, quando cada um tomava sua taça de conhaque, o juiz lhe perguntou o que havia de tão engraçado. Buenos Aires está afundando, respondeu Pereda. O velho jornalista pensou que o advogado tinha enlouquecido e recomendou-lhe a praia, o mar, aquele ar revigorante. O juiz, menos dado às elucubrações, pensou que Pereda saíra pela tangente.

Em poucos dias a Argentina teve três presidentes. Não ocorreu a ninguém pensar em uma revolução, e não ocorreu a nenhum militar a ideia de encabeçar um golpe de Estado

Poucos dias depois, é claro, a economia argentina despencou no abismo. Contas-correntes em dólares foram congeladas, os que não haviam mandado seu patrimônio (ou suas economias) para o estrangeiro de repente se viram sem nada, alguns títulos, algumas promissórias que só de olhar deixavam o cabelo em pé, vagas promessas ligeiramente inspiradas em um tango esquecido e na letra do hino nacional. Eu avisei, disse o advogado a quem quis ouvi-lo. Depois, acompanhado de suas duas empregadas, fez o mesmo que muitos portenhos de então: longas filas, longas conversas com desconhecidos (que lhe pareceram simpaticíssimos) em ruas lotadas de gente enganada pelo Estado ou pelos bancos ou por quem quer que fosse.

Quando o presidente renunciou, Pereda participou do panelaço. Não foi o único. Às vezes, as ruas lhe pareciam tomadas por velhos, velhos de todas as classes sociais, e gostava disso sem saber por quê, parecia-lhe um signo de que algo estava mudando, de que algo se movia na escuridão, embora tampouco lhe repugnasse participar de manifestações com piqueteiros que não demoravam em se converter em balbúrdia. Em poucos dias a Argentina teve três presidentes. Não ocorreu a ninguém pensar em uma revolução, e não ocorreu a nenhum militar a ideia de encabeçar um golpe de Estado. Foi quando Pereda decidiu regressar ao campo.

Produto

  • O Gaucho Insofrível
  • Roberto Bolaño (trad. Joca Reiners Terron)
  • Companhia das Letras
  • 152 páginas

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