Trecho de livro

Morreste-me

Romance sobre o luto pela perda paterna, que lançou a carreira do escritor José Luís Peixoto, hoje um dos maiores da língua portuguesa, ganha edição especial

Leonardo Neiva 28 de Novembro de 2025

Uma carta sobre o doloroso processo de adoecimento e luto pela perda de um pai. A receita enganosamente simples é a base para “Morreste-me” (Dublinense, 2025), livro que lançou o autor José Luís Peixoto, hoje uma das principais vozes da literatura portuguesa, à notoriedade. Publicado originalmente em 2000 — e, aqui no Brasil, em 2015 —, a obra acaba de ganhar uma nova edição em comemoração ao seu aniversário de 25 anos. Além de um relato sobre a morte paterna, o livro é também um documento extremamente pessoal sobre luto e uma homenagem à memória redentora de um pai e de seu legado.

“Sem essa perda, não teria escrito os livros que escrevi. Este pequeno livro é a base de tudo o que viria depois”, confessa o escritor, dramaturgo e poeta. Sem o breve “Morreste-me”, portanto, não haveriam livros como “Galveias” (Companhia das Letras, 2015), “Cemitério de Pianos” (Record, 2008) e “Nenhum Olhar”(Dublinense, 2018) — este último, vencedor do Prêmio José Saramago. Em todos eles, o autor explora temas de família, origem e identidade, em narrativas nas quais a poesia invade a prosa de forma costumeira.

Esta edição especial ganha posfácios inéditos da médica e autora Ana Claudia Quintana Arantes, especialista em cuidados paliativos e luto, e do escritor Reginaldo Pujol Filho. A nova versão traz, além disso, um contexto mais aprofundado para a importância da obra e de Peixoto na literatura contemporânea. Autor também de livros de poesia e de viagem, o escritor foi reconhecido em diversos prêmios internacionais, como o Oceanos, um dos mais importantes da língua portuguesa. Dono de uma voz única, ele lança mão já neste primeiro romance de recursos como a repetição e frases entrecortadas, que dão à sua prosa poética uma pulsão de vida, de realidade. A seguir, você lê o trecho inicial da obra.


Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as casas, a branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo entristecido e muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e maresia distante fresca, engoliam esta luz agora cruel, quando os teus olhos falavam alto e o mundo não queria ser mais que existir. E, no entanto, tudo como se continuasse. O silêncio fluvial, a vida cruel por ser vida. Como no hospital. Dizia nunca esquecerei, e hoje lembro-me. Rostos tornados desconhecidos, desfigurados na minha certeza de perder-te, no meu desespero desespero. Como no hospital. Não acredito que possas ter esquecido. Enquanto esperava pela minha mãe e pela minha irmã, as pessoas passavam por mim como se a dor que me enchia não fosse oceânica e não as abarcasse também. As mulheres falavam, os homens fumavam cigarros.

No quarto, numa cama qualquer que não a tua, o teu corpo, pai. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e amarelado, respiravas ofegante

Como eu, esperavam; não a morte, que nós, seres incautos, fechamos-lhe sempre os olhos na esperança pálida de que, se não a virmos, ela não nos verá. Esperavam. Num carro demasiado rápido, a minha mãe, curvada de perder o que possuía, e a minha irmã. Os homens e as mulheres falavam e fumavam ainda quando subimos. No quarto, numa cama qualquer que não a tua, o teu corpo, pai. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e amarelado, respiravas ofegante. O ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o seu caminho rouco. Pelo nariz, entrava o tubo que te sustinha. Aos pés da cama, a minha mãe calada, viúva de tudo. À cabeceira, a minha irmã, eu. Cortinas de plástico, biombos de banheira separavam-nos das outras camas. Pousei-te as mãos nos ombros fracos. Toda a força te esmorecera nos braços, na pele ainda pele viva. E menti-te. Disse aquilo em que não acreditava. Ao olhar amarelo, ofegante, disse que tudo serias e seríamos de novo. E menti-te. Disse vamos voltar para casa, pai; vamos que eu guio a carrinha, pai; só enquanto não puder, pai; vá, agora está fraco mas depois, pai, depois, pai. Menti-te. E tu, sincero, a dizeres apenas um olhar suplicante, um olhar para eu nunca mais esquecer. Pai. À hora, mandaram-nos sair. Quando saímos, agarrados como náufragos, a luz abundante bebia-nos.

Menti-te. Disse vamos voltar para casa, pai

E esta tarde, e esta terra agora cruel. Na nossa rua, a nossa casa. A porta do quintal parada à minha frente, fechada, desafiante. Dizia nunca esquecerei, e esta tarde lembrei-me. Com os teus movimentos, tirei do bolso o teu molho de chaves e, como costumavas, usei todos os cuidados para escolher a chave certa, examinando cada uma, orgulhando-me de cada uma. E, na fechadura, o triunfo. As coisas a acontecerem devidamente. A ferrugem, as dobradiças soltaram um grito como um suspiro ou um estertor. O alumínio rente ao mármore arrastou, varreu uma figura certa e branca no cobertor grosso de folhas de pessegueiro. Abandonado sobre o tamanho grande de um inverno, o quintal de quando eu era pequeno, o quintal que construíste, pai. Tristes tristes flores novas e folhas novas nos ramos das árvores, canteiros pintados de malvas, trevos, ervas verdes, verdes de quando eu era pequeno e tu chegavas e me ensinavas trabalhos de grande. Orienta-te, rapaz. Eu oriento-me, pai. Não se preocupe. Eu também sei, eu também consigo. Eu oriento-me, pai. Não se rale. O trabalho não me mete medo. Esteja descansado, pai. Flores novas e folhas novas nos ramos das árvores, canteiros pintados de malvas, trevos, ervas verdes, verdes desta primavera triste triste.

Abandonado sobre o tamanho grande de um inverno, o quintal de quando eu era pequeno, o quintal que construíste, pai

Produto

  • Morreste-me
  • José Luís Peixoto
  • Dublinense
  • 80 páginas

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