Eva
A cientista Cat Bohannon analisa em seu primeiro livro 200 milhões de anos da evolução humana a partir do corpo feminino, assim como sua exclusão da ciência
A ciência e a medicina são para todos, sem distinção, certo? Na teoria sim, mas a prática e a história traçam um relato bem diferente. Por questões de praticidade, rapidez e, claro, por uma visão histórica que sempre colocou o corpo do homem cisgênero no centro de tudo, as pesquisas científicas e tecnológicas na grande maioria das vezes excluíram da equação corpos femininos ou não identificados com essa masculinidade hegemônica. É algo que a cientista e pesquisadora estadunidense Cat Bohannon define como a “norma masculina”, que ainda persiste nas ciências biológicas, uma perspectiva que ela confronta em seu livro “Eva – Como o corpo feminino conduziu 200 milhões de anos da evolução humana” (Companhia das Letras, 2024).
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Ao recuperar a história e analisar as “ancestrais evolutivas” das mulheres ao longo desse período, a autora propõe não só uma revisão da perspectiva que tem regido a ciência, mas uma verdadeira correção de curso para compreender as diferenças fundamentais entre os corpos, que vão muito além dos órgãos sexuais. “Doses padronizadas de antidepressivos são ministradas tanto em homens quanto em mulheres, apesar de indícios de que talvez possam afetar de forma diferente os dois sexos. Receitas de remédios contra a dor também são consideradas sexualmente neutras, apesar dos indícios consistentes de que alguns podem ser menos eficazes para mulheres”, exemplifica na introdução da obra.
A principal justificativa para essa lacuna tem sido a dificuldade extra colocada pelo monitoramento do ciclo reprodutivo e de fertilidade feminino, considerado difícil e custoso. “O ovário em si é visto como um ‘fator de confusão'”, aponta Bohannon. No entanto, baseada nas pesquisas científicas mais recentes, a autora vai desconstruindo essa noção, com descobertas que vão desde as mudanças na estrutura corporal geradas pelas cesarianas até as semelhanças entre pus e o leite materno. Assim, apresenta uma nova perspectiva sobre a evolução da humanidade que passa a compreender as características específicas de cada ser humano, independentemente de identidade de gênero ou sexo biológico.
Elizabeth Shaw tem um problema. O diretor Ridley Scott a fez engravidar de uma imensa e terrível lula alienígena. A bordo da espaçonave Prometeu, ela precisa dar um jeito de abortar seu convidado indesejado sem morrer de hemorragia. A personagem, então, corre até um módulo médico futurista e pede ao computador uma cesariana. “Erro”, responde a máquina. “Este módulo está calibrado apenas para pacientes do sexo masculino.”
“Nossa”, disse uma mulher sentada atrás de mim. “Como é possível?”
Segue-se uma cena sanguinolenta que envolve raios laser, grampos e tentáculos que não param de se contorcer. Nesse dia de 2012, sentada na sala escura do cinema em Nova York assistindo à prequel do filme Alien, não tive como não pensar: Pois é, como é possível? Quem é que manda uma expedição de bilhões de dólares para o espaço e esquece de verificar se o equipamento funciona para mulheres?
Na verdade é exatamente isso que a medicina moderna faz muitas vezes. Doses padronizadas de antidepressivos são ministradas tanto em homens quanto em mulheres, apesar de indícios de que talvez possam afetar de forma diferente os dois sexos. Receitas de remédios contra a dor também são consideradas sexualmente neutras, apesar dos indícios consistentes de que alguns podem ser menos eficazes para mulheres. Temos uma probabilidade maior de morrer de infarto, muito embora nossa chance de infartar seja menor: como os sintomas variam conforme o sexo, nem as mulheres nem seus médicos conseguem identificá-los a tempo. Anestésicos cirúrgicos, tratamentos para doença de Alzheimer e até mesmo o currículo do ensino público padecem do conceito equivocado de que corpos femininos são apenas corpos de modo geral: macios, carnudos e desprovidos de partes baixas importantes, mas, tirando isso, iguaizinhos aos corpos dos homens.
E é claro que quase todos os estudos que produziram esses achados incluíram apenas participantes cisgênero: no mundo da pesquisa científica, muito pouca atenção foi dedicada ao que acontece no corpo das pessoas que nascem com um sexo e posteriormente passam a se identificar com outro. Isso se deve em parte à diferença colossal que existe entre o sexo biológico — algo entranhado bem fundo na trama do nosso desenvolvimento físico, desde as organelas intracelulares até os aspectos físicos globais — e a identidade de gênero da humanidade, algo fluido, baseado no cérebro e que tem no máximo umas poucas centenas de anos de idade.*
Receitas de remédios contra a dor são consideradas sexualmente neutras, apesar dos indícios de que alguns podem ser menos eficazes para mulheres
Mas não é só isso. O fato é que até muito pouco tempo atrás o estudo do corpo biologicamente feminino ficou muito aquém em relação ao estudo do corpo biologicamente masculino. Não é só que os médicos e cientistas não se dão ao trabalho de procurar dados específicos ao sexo: até muito recentemente esses dados não existiam. De 1996 a 2006, mais de 79% dos estudos em animais publicados no periódico científico Pain tinham apenas participantes do sexo masculino. Antes dos anos 1990, as estatísticas eram mais desproporcionais ainda. E isso não é nem um pouco fora da curva: dezenas de periódicos científicos significativos relatam a mesma coisa. Por trás desse ponto cego em relação aos corpos femininos, quer estejamos falando de biologia básica quer das nuances da medicina, não é apenas o sexismo. Trata-se de um problema do intelecto que se tornou um problema da sociedade: há muito tempo vimos refletindo de um jeito inteiramente equivocado sobre o que são corpos sexuados e como devemos proceder para estudá-los.
Nas ciências biológicas ainda existe algo chamado “norma masculina”.** O corpo masculino, desde o camundongo até o ser humano, é aquele que se estuda no laboratório. A menos que se esteja pesquisando especificamente ovários, úteros, estrogênios ou mamas, as mulheres ficam de fora. Pense na última vez em que você ficou sabendo sobre um estudo científico — por um artigo sobre uma nova descoberta relacionada à obesidade, à tolerância à dor, à memória ou ao envelhecimento. O mais provável é que esse estudo não tenha incluído nenhuma participante do sexo feminino. Isso vale tanto para camundongos quanto para cães, porcos, macacos e, com grande frequência, seres humanos. Quando um novo medicamento começa a ser testado clinicamente em humanos, ele pode não ter sido testado em nenhum animal do sexo feminino. Assim, ao pensarmos em Elizabeth Shaw se esgoelando no futuro por causa do módulo médico misógino, não deveríamos sentir apenas pânico, pena e incredulidade. Deveríamos sentir empatia.
Por que isso ainda acontece? A ciência não deveria ser objetiva? Neutra do ponto de vista do gênero? Baseada no método empírico?
Nas ciências biológicas ainda existe algo chamado “norma masculina”. O corpo masculino, desde o camundongo até o ser humano, é aquele que se estuda no laboratório
Na primeira vez em que me inteirei da norma masculina, fiquei absolutamente estarrecida, não só por ser mulher, mas porque na época eu era doutoranda na Universidade Columbia para estudar evolução da narrativa e da cognição — para simplificar, dos cérebros e das histórias — e seus 200 mil anos de história. Já tinha lecionado e feito pesquisas em vários institutos de renome especializados em aprendizado e ciência no mundo moderno. Eu achava, portanto, que tivesse uma visão bastante boa da condição das mulheres no meio acadêmico. Apesar de ter presenciado algumas situações esquisitas, eu mesma nunca tinha sido vítima de machismo no laboratório. Pensar que boa parte das ciências biológicas ainda se apoiava na “norma masculina” sequer me passava pela cabeça. Embora eu seja feminista, meu feminismo era mais de um tipo prático: o simples fato de ser mulher e de fazer pesquisa quantitativa era para mim um ato revolucionário. E, para ser bem sincera, os biólogos, neurocientistas, psicólogos e biofísicos que eu conhecia, desde aqueles com quem eu colaborava até aqueles com quem saía para beber, estavam entre as pessoas mais cosmopolitas, liberais, sinceras, inteligentes e legais que eu já tinha conhecido. Se eu fosse dada a apostas, jamais teria pensado que elas fossem do tipo a perpetuar algum tipo de injustiça sistêmica, muito menos uma que prejudicasse a prática científica.
Mas a culpa não é inteiramente delas. Muita gente que faz pesquisa acaba usando participantes do sexo masculino automaticamente devido a motivos práticos: é difícil levar em consideração os efeitos dos ciclos de fertilidade femininos, em particular dos mamíferos. Em intervalos regulares, uma complexa sopa hormonal inunda os corpos femininos, ao passo que os hormônios sexuais masculinos parecem mais estáveis. Um bom experimento científico tem como objetivo ser simples e projetado com o menor número possível de “fatores de confusão”. Como me disse certa vez um pós-doutor num laboratório vencedor do Nobel, usar animais do sexo masculino “simplesmente facilita a prática de uma ciência limpa”. Em outras palavras, as variáveis são mais fáceis de controlar, tornando dessa forma os dados mais interpretáveis com menos esforço, e os resultados mais significativos. Isso se aplica em especial aos sistemas complexos estudados nas pesquisas sobre comportamento, mas pode constituir um problema até mesmo em coisas básicas, como o metabolismo. Demorar-se o suficiente para monitorar o ciclo reprodutivo feminino é considerado algo difícil e custoso; o ovário em si é visto como um “fator de confusão”. Assim, a menos que um/a cientista esteja fazendo especificamente uma pergunta sobre o sexo feminino, este é deixado de fora da equação. Os experimentos acontecem mais depressa, os artigos são publicados antes, e quem conduz a pesquisa tem mais probabilidade de conseguir financiamentos e cátedras.
Só que tomar esse tipo de decisão para “simplificar” também tem como causa (e ajuda a perpetuar) um entendimento muito mais antigo do que são os corpos sexuados. Não que praticantes de ciência de alto coturno ainda achem que os corpos femininos foram criados quando Deus tirou uma das costelas de Adão, mas a pressuposição de que ser sexuado/a é uma questão que se limita aos órgãos sexuais — de que ser do sexo feminino é de alguma maneira apenas um ajuste mínimo numa forma platônica — é meio parecida com essa antiga história bíblica. E essa história é mentira. Como temos aprendido cada vez mais, corpos femininos não são apenas corpos masculinos com “coisas a mais” (gordura, seios, úteros). Tampouco testículos e ovários são intercambiáveis. Ser sexuado/a permeia todos os aspectos importantes de nossos corpos de mamíferos e da vida que levamos dentro deles, tanto no caso dos camundongos quanto no dos seres humanos. Quando a ciência estuda apenas a norma masculina, estamos vendo menos da metade de um quadro complexo; com grande frequência não sabemos o que perdemos ao ignorar as diferenças sexuais, porque não estamos questionando isso.
Quando a ciência estuda apenas a norma masculina, estamos vendo menos da metade de um quadro complexo
*Sei que alguns ainda têm dificuldade para aceitar essa ideia, mas a maior parte da comunidade científica concorda que o sexo biológico é fundamentalmente distinto da identidade de gênero humana. A crença de que os aspectos tipicamente sexuais do corpo de uma pessoa lhe atribuem obrigatoriamente uma identidade e um comportamento de gênero equivalentes às vezes é chamada de “biologismo”, ou, falando de maneira mais ampla, “essencialismo de gênero” (Witt, 1995). O problema do essencialismo de gênero é que se trata de uma extensão natural do sexismo. Sociedades que constroem crenças culturais profundas sobre o que um ou outro gênero “deveria” ser tendem a acreditar que uma pessoa pertence a um ou outro gênero desde que nasce, a depender do aspecto do seu corpo. Essas sociedades então reforçam fortemente essas crenças por meio de diversas regras para cada gênero, que vão do desgaste cognitivo sutil e irritante da exclusão social até castigos extremamente violentos para quem “viola as regras”, além de tudo o que houver entre uma coisa e outra.
**Na literatura científica, isso também é chamado de “viés masculino”.
- Eva
- Cat Bohannon (trad. Fernanda Abreu)
- Companhia das Letras
- 616 páginas
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