Trecho de Livro: Mulher Feita e Outros Contos, de Marilene Felinto — Gama Revista

Trecho de livro

Mulher Feita e Outros Contos

Em livro de contos, a escritora e tradutora Marilene Felinto parte de situações cotidianas para descortinar as vidas internas complexas de suas personagens

Leonardo Neiva 02 de Setembro de 2022

Seja uma jovem que pergunta a uma senhora no café da manhã se ela mantém o hábito de comer tanajuras ou uma mulher feita, como no título, que subitamente percebe ter peitos, em seu novo livro, a escritora pernambucana Marilene Felinto parte com frequência de eventos cotidianos aparentemente simples para descortinar a vida complexa de suas personagens. De volta ao formato de narrativas curtas em “Mulher Feita e Outros Contos” (Fósforo, 2022), ela explora nessas páginas da infância à velhice, da memória ao súbito esquecimento e lembrança do que significa ser mulher.

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Além de tradutora de autores do naipe de Virginia Woolf, Ralph Ellison, Malcolm X e Edgar Allan Poe, a escritora e jornalista, que é formada em Letras e também mestre em psicologia clínica, publicou dez livros ao longo de uma prolífica carreira. Entre eles, o romance “As Mulheres de Tijucopapo” (Ubu, 2021), um fluxo de consciência em que a narradora reconta a história das mulheres guerreiras que fizeram parte da sua vida, numa obra que venceu o prêmio Jabuti de autora revelação em 1982.

O conto que Gama reproduz aqui começa com a súbita percepção da protagonista de que tem peitos. A partir da situação inusitada, numa escrita quase sempre direta e evocativa, perpassa inseguranças com a própria beleza, relembra a primeira descoberta de que era mulher e compartilha suas impressões sobre o masculino e o medo de se reconhecer humana.


Mulher feita

Às vezes esquecia-se de que mulher tem peito — via-se ao espelho por acaso e, também por acaso, lembrava-se, olhava-se, observava-se parada e: Nossa! Mulher tem peito!

Diante do espelho casual, estranhava repentinamente o fato de mulher ter peito: as duas coisas, os dois cocos, as duas cuias, os dois calombos. Tinha esquecido daquela fachada com peitos. Ter peitos era quase extraordinário. Era como se, na maior parte de sua existência, e já mulher feita, eles passassem despercebidos: como se ela estivesse andando nua da cintura para cima, sem vestido, sem blusa, sem camisa no calor dos dias, com o mesmo tórax achatado dos machos!

Socorro! Mulher tinha mesmo peito. Que coisa. Ter peito era como estar para fora ou para além de si mesma.

— Não sei como alguém pode gostar de mim assim, eu que tenho peitos! — dizia-se, pensativa. Às vezes, como ali, achava-se feia.

Os peitos inanimados, insípidos e inodoros olhavam para ela como se nunca tivessem existido de fato, como uma natureza morta e, somente ali, naquela miragem súbita ao espelho, manifestada.

Ter peitos, mamas no tórax, se não era um defeito (socorro!), era no mínimo uma estranheza, uma surpresa. Era como se — de tanto esquecimento de sua própria condição –, estivesse percebendo pela primeira vez aquele algo tão explícito a diferenciá-la de um macho. E naquele súbito momento ao espelho!

Peitos eram para fêmeas. Socorro! Teve vontade de gritar, como quem descobre uma assombração. É que ela estava parada diante do espelho, imóvel como seus peitos mudos. Se estivesse correndo, aí sim, os peitos balançavam e ela então notava, mas prosseguia.

Sua imagem demorava-se ao espelho: “Como é que alguém pode gostar de mim?”. A pergunta ampliava-se, dos peitos para mais, para ela mesma, para tudo aquilo que considerava que havia de feio e esquisito no corpo, na alma — a imagem deformava-se no espelho, virava um tanto quanto monstruosa mulher!

Um dos piores momentos de sua vida, relembrava: “Foi quando me começaram a surgir peitos, nos meus doze ou treze anos de idade…”. E dizia “me começaram” porque era assim mesmo que tinha sido, que tinham feito com ela, que não fora ela que fizera aquilo: “Me começaram a surgir peitos!”. E como esconder aquela protuberância enxerida, ela ainda menina que brincava? Coisa embaraçosa, que os meninos olhavam: “Pois eu vou esfregar meu peito na sua cara, seu besta!” — ela ameaçava, respondendo aos meninos que olhavam. Mas aquela remota possibilidade, aquela cena nua, aqueles mamilos atrevidos, aqueles peitilhos sendo esfregados na cara do menino… tudo aquilo lhe produzia um intenso calor corpo acima e corpo abaixo. O que era?

— Você já precisa usar um sutiã para ir pra escola. — A mãe recomendava.

— Não vou usar não. Me aperta! É horrível.

— Pois então vai de combinação por baixo da blusa! Escolha. Você anda muito desobediente.

Ter peitos era quase extraordinário. Era como se, na maior parte de sua existência, e já mulher feita, eles passassem despercebidos

Peito, espartilho, espartano, aperto no seu corpete de menina: escolher entre esconder ou esfregar na cara.

Peitos foram seu primeiro impedimento. Desde a constrangedora puberdade sentira-se afrontada pelo tórax achatado dos meninos, aquele escudo em que a bola de futebol batia, quicava, aquele peito que eles estufavam sem dor para receber o toque da bola!

— Tira essas tuas tetas da minha frente! — Um menino irrompeu, esbarrando nela um dia, no jogo de futebol, como se ela estivesse atrapalhando em campo.

— Teta só se for a da tua mãe! — Ela reagiu de imediato. Que não era vaca, ora bolas, ora pinoia!

E se atirou na frente do menino, interpondo-se à bola, ao drible, ao chute:

— E olha que eu esfrego meus peitos na tua cara, e você vai ver só o que é gosto de leite de peito na tua boca!

Peitos foram seu primeiro impedimento, mas também sua primeira resistência.

O menino esquivou-se, fazendo cara de nojo. E ela ficou ali gargalhando — sabia que leite de peito de mulher repugnava meninos e meninas de sua idade, eles que observavam de soslaio, às risadinhas, as mulheres da família ou da vizinhança que amamentavam seus filhotes pequenos ou recém-nascidos. Com ela mesma tinha acontecido isso. Quando era ainda mais menina, teve uma doença nos olhos — “doença de vista”, diziam –, para a qual receitaram uma simpatia: lavar todos os dias os olhos com leite do peito de mulher parida.

— Eca! Não quero isso! — Ela protestava inutilmente enquanto a mãe derramava o líquido ainda morno e viscoso em seus olhos.

— Tem que ser. Você está com doença de vista. Ou quer ficar cega? — A mãe agourava.

O leite humano, leite de mamífera, escorria-lhe branco pela cara abaixo e ela sentia asco.

— Tem que ser. Essa doença é contagiosa. — A mãe insistia.

Era ainda mais menina, acometida pela doença de olhos que a deixava apenas entrever o mundo embaciado: por uma fresta entre as pálpebras e os cílios, os olhos inchados, avermelhados e cerrados no grude, na secreção.

E ela lacrimejava (ou chorava?) ao toque quente na pele, ao banho de leite de peito.

— Não quero leite de peito de mulher na minha cara! — protestava, desobediente. — E de quem é esse leite? De qual mulher?!

Era de uma vizinha de dez casas adiante… a da casa verde, a de muitos filhos…

— Mas aquela mulher? Eu não gosto dela! — E lacrimejava, lacrimejava… (Ou era choro?)

Mas levaria semanas ou meses até que, ainda com nojo, tivesse coragem de olhar para as mamas da mulher do leite, a mulher grande, cheia de filhos que mamavam nela

Com o passar dos dias, a lavagem foi fazendo efeito, descolando aos poucos a remela amarela. Os olhos abriram-se por inteiro, o mundo ressurgiu limpo e desanuviado. Mas levaria semanas ou meses até que, ainda com nojo, tivesse coragem de olhar para as mamas da mulher do leite, a mulher grande, cheia de filhos que mamavam nela.

Mexeu-se diante do espelho… fez que ia pegar o sutiã para vestir. Interrompeu-se, aproximando-se mais do espelho para enxergar melhor os mamilos.

Tinha um estoque de lembranças de infância, mas justamente aquela não tinha — aquela de ter mamado, sugado o peito de sua própria mãe. Por que ninguém tinha? De certo ficava guardada em algum canto da memória do prazer de viver e de sobreviver, de saciar-se, de não morrer.

Produto

  • Mulher Feita e Outros Contos
  • Marilene Felinto
  • Fósforo
  • 80 páginas

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