Trecho de Livro: Entre Sessões, de Lucas Liedke — Gama Revista

Trecho de livro

Entre Sessões

Lucas Liedke derruba as paredes do consultório para abordar em novo livro os efeitos e impacto da psicanálise no dia a dia

Leonardo Neiva 21 de Abril de 2023

Psicanálise para além do divã não é apenas o subtítulo do novo livro do psicanalista e analista de cultura e comportamento Lucas Liedke. É também a descrição quase perfeita da jornada narrada em “Entre Sessões” (Paidós, 2023), desde a descoberta e os caminhos pessoais do autor na psicanálise até sua expansão para o exercício terapêutico nos mais diferentes aspectos da vida cotidiana, em reflexões sobre o mundo e o tempo em que vivemos.

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“Afinal, não é entre sessões que a vida acontece?”, questiona Liedke na introdução da obra. Da atmosfera sisuda do consultório ao palavreado rebuscado de alguns psicanalistas, ele não nos deixa esquecer que, apesar do embrulho um tanto circunspecto, lá dentro a psicanálise trata justamente das paixões, sonhos, frustrações e desejos da “vida normal”. “Vivemos a psicanálise na observação do mundo, do outro e de nós mesmos”, escreve o especialista. “Creio que podemos fazer uso dessas reflexões para provocar alguma transformação também no mundo, no outro e em nós mesmos.”

É partindo da teoria, da experiência clínica e dos mais recentes estudos comportamentais que o livro aborda o impacto de temas como memes, sonhos, internet e a ansiedade nossa de cada dia. Também não se furta a comentar os efeitos da proliferação de conteúdos sobre saúde mental nas redes — sem a abordagem negativa que hoje já se espera ao falar do tema. Afinal, Liedke virou especialista em traduzir nas redes em memes o que muita gente sente, aproveitando a deixa para explicar conceitos importantes da área. “A psicanálise parece ensaiar uma infeliz sintonia com o fenômeno contemporâneo da lacração, que (…) tenta posicionar aquele que enuncia como o dono irrevogável da razão”, diz o autor no trecho abaixo.


Conceitos em suspensão

Foi em sessão com uma antiga terapeuta junguiana que escutei pela primeira vez o termo mentaloide. Essa palavra, como era de se esperar, ficou povoando a minha mente para sempre, o que é bastante irônico. Até hoje não sei o que ela quis dizer com esse neologismo, mas, em minhas deduções, surgem duas hipóteses: 1) mentaloide seria um sujeito marcado por um excesso de produção e articulação mental, o que acabaria prejudicando-o de alguma forma, fazendo-o deficitário em outros aspectos da vida que estão para além da racionalidade; ou 2) mentaloide seria um sujeito que faz uso desmedido das faculdades mentais para colocar isso sempre à frente de todo o resto, de maneira, principalmente, a expor e exibir esses dotes mentais para o mundo (levando em conta que o sufixo grego -oide diz respeito à imagem e à aparência).

De qualquer forma, faz bastante sentido que o tal sujeito mentaloide possa ser visto como uma espécie de nêmesis de todo e qualquer analista, analisando ou estudante de psicanálise. É o nosso grande rival. A nossa sombra. O mentaloide é um indivíduo que tem uma poderosa força mental que, usada às avessas, transforma o suposto “super-herói” em um grande vilão do processo de análise ou da transmissão do conhecimento psicanalítico. Sabemos quão comum é encontra analistas que parecem profundamente tomados por uma certa embriaguez do saber (que não deveria deixar de ser um suposto saber), mas que, arrebatados por uma distração egoica irresistível, encontram aí um lugar favorito de gozo. Um lugar onde, de alguma forma, os outros costumam nos colocar, enquanto analistas que somos, e onde, de outra, nós mesmos nos colocamos, mas que exige um certo discernimento sobre como e quando ocupá-lo e desocupá-lo. Sabemos como é nocivo e ilegítimo sair fazendo análises a torto e a direito de pessoas ou situações não contidas em um setting analítico, uma transferência e uma demanda de análise. Mas, sim, devemos admitir que, às vezes, fazemos isso. “Informalmente”. Até porque todo mundo faz isso, às vezes, desse modo. Mas não é porque todo mundo faz que o analista também deveria fazer. Disso o analista vai precisar abrir mão.

Não raro, o analista — ou nem precisa ser analista — faz uso da psicanálise para soltar frases de impacto, sínteses contundentes com palavras difíceis ou abstratas, que têm a intenção principalmente de impressionar ou até de confundir o seu interlocutor. Nesse sentido, a psicanálise parece ensaiar uma infeliz sintonia com o fenômeno contemporâneo da lacração, que, enquanto última palavra, final e fatal, tenta posicionar aquele que enuncia como o dono irrevogável da razão. Mas, como já sabemos, nunca foi sobre isso. Ainda assim, muitos de nós analistas seguimos agindo dessa forma em algumas conversas e rodas de discussão um tanto cansativas, intermináveis, pretensiosas. Uma masturbação intelectual coletiva bem pouco prazerosa.

A psicanálise parece ensaiar uma infeliz sintonia com o fenômeno contemporâneo da lacração, que (…) tenta posicionar aquele que enuncia como o dono irrevogável da razão

Eu me questiono se existe um limiar adequado entre exercer um certo domínio sobre o conteúdo teórico da psicanálise e, ao mesmo tempo, reconhecer que todos os significantes, inclusive os próprios termos psicanalíticos, estão sujeitos a uma determinada fluidez em seus sentidos. E que sem a contrapartida da escuta e da troca, no fazer e no falar sobre psicanálise, não será possível nenhuma transformação subjetiva, nenhuma evolução teórica, e não chegaremos a nenhum lugar novo. Eu nunca pretendi começar essa jornada, como analista ou analisando, para terminar exatamente no mesmo lugar. Muito menos para fazer um mero regresso ao século passado, entoando termos e versículos, decorados como orações, que repetimos à exaustão sem qualquer contextualização e sentido com nossa realidade do presente e nossas perspectivas de futuro.

Desde os meus primeiros contatos com a psicanálise, eu ouço a respeito da importância de deixarmos os conceitos psicanalíticos em suspensão. Isso é interessante, mas com certeza não é o que fazemos na prática. Pelo menos não o tempo todo. Até porque isso se torna inviável na hora de colocarmos a mão na massa — na clínica, nas aulas, nas supervisões, na hora de transmitir ou receber qualquer fundamentação teórica. O confinamento das definições é necessário, mas deve ser feito com bastante cuidado. Freud elaborou essa questão da seguinte forma:

Ouvimos com frequência a afirmação de que as ciências devem ser estruturadas em conceitos básicos claros e bem definidos. De fato, nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. [As] ideias […] devem, de início, possuir necessariamente certo grau de indefinição.

O psiquiatra austríaco defende que todo conhecimento teórico pode e deve ser alterado/revisitado no futuro, e provavelmente o será. Ou seja, uma das grandes genialidades do fundador da psicanálise foi encontrar um balanço entre a firmeza de propor um olhar novo e a flexibilidade de reconhecer os próprios estágios de maturação desse olhar.

Enquanto analista e sujeito que se propõe a pensar e falar abertamente sobre psicanálise, ainda me sinto desafiado a tentar assimilar ao máximo tudo aquilo que escuto, leio e estudo. Mas não dá. E tudo é sempre muita coisa. Tento continuamente resolver as lacunas que se abrem a cada novo texto, nova aula, novo encontro, novo professor, novo supervisor, novo colega ou analisando (sim, a teoria também se faz, desfaz e refaz na clínica). Mas, de novo, não dá. Encontramos sempre uma boa medida de impossível, que é contemplar e absorver uma noção total e absoluta de Pulsão, ou Inconsciente, ou Neurose, ou tantos termos que poderiam ser simples se não revelassem camadas tão complexas de potência e sentido. E mais: os tempos mudam, a cultura muda, e muito da psicanálise muda também. Ou deveria mudar. Chegaremos lá.

Os tempos mudam, a cultura muda, e muito da psicanálise muda também. Ou deveria mudar

Aos poucos, creio que fui me conformando com o fato de que a psicanálise surgiu do mistério e que, a respeito dele, podemos fazer reflexões, contornos e aproximações, mas jamais desvendá-lo integralmente. Não é fácil abrir mão desse ideal do psicanalista que tenta ficar em primeiro lugar, que gabarita o exame (inexistente) e que lê e absorve todos os livros, teses, artigos e postagens já escritos na história da psicanálise. Não vai funcionar desse jeito. O poder imaginário de autoridade que vem vinculado à compreensão da teoria psicanalítica parece muito sedutor, mas existe, sim, muita imprecisão, contradição e, sem dúvida, muita subjetividade em jogo. É como se a psicanálise fosse, ela própria, uma analogia para a mente humana: imprecisa, contraditória, aberta à subjetividade e muitas camadas de interpretação.

Preservar essa relativa abertura dos conceitos e das definições teóricas é um grande desafio se considerarmos também que a nossa tendência natural, ou pelo menos da nossa cultura neoliberal, é a de querer não apenas aprender sobre um determinado campo de estudo, mas também apreendê-lo, no melhor sentido de “capturá-lo”. Ou seja, é também sobre apropriação. É também sobre fazer uso, tirar proveitos e benefícios. Tirar dinheiro e status disso também. Sim, por que não? O problema é que, quando o estudante em formação ou o futuro profissional escolhe, logo de partida, entrar por essa via e sustenta uma predominância desse tipo de abordagem ao longo do seu percurso, é bem possível que algum tropeço venha a acontecer na sua trajetória. Testemunhei algumas histórias assim, de frustração, desistência, verdadeiro ódio da psicanálise. Por essas e outras é tão recomendado, inclusive, não depender da clínica psicanalítica como uma única e exclusiva forma de sustento financeiro, principalmente quando estamos dando os nossos primeiros passos. O maior risco é performarmos uma clínica que simplesmente não está acontecendo, pois não queremos (nem podemos) “perder o cliente”. A enganação acaba sendo de ambas as partes, mas é o analista o principal responsável por investigar o que está sustentando ou obstruindo aquela análise. A resistência é prioritariamente do analista, e, se a sua estabilidade financeira estiver dependendo disso, possivelmente ele vai resistir ainda mais.

Vale lembrar também, para quem ainda teima em aceitar, que a psicanálise não é — e possivelmente nunca se tornará — um curso de graduação. Seu ensino e sua transmissão não se encaixam nos moldes acadêmicos, pois é uma prática leiga e laica que não deve ser vinculada ao Estado ou à religião. Não existe isso de diploma ou carteirinha de habilitação, ainda que existam muitos desses circulando por aí. O vídeo do YouTube Faculdade em psicanálise?, no canal Falando nIsso, do professor e psicanalista Christian Dunker, faz os melhores esclarecimentos sobre o tema. Ele explica que a psicanálise é uma experiência ética, e não jurídica ou moral, e que a sua corporativização como profissão seria, sem dúvida, um grande equívoco. A formação do analista tem um sentido muito mais amplo do que um curso de habilitação determinado por um escopo de matérias e número de horas a serem cumpridas. É atravessada pela transferência com outros analistas e pela sua análise pessoal. Como seria possível obrigar um aluno a “entrar em análise”, já que esta só se dá com o desejo do analisando, e não com uma exigência de grade curricular? São trajetos diferentes.

Algo sempre falta e tudo sempre depende, e isso é penoso, mas ao mesmo tempo libertador

Se, de um lado, existe a nossa insistência em fechar, definir e preencher, a psicanálise nos convida a experimentar o contrário de tudo isso. Nesse puxa e solta, nesse vaivém, o desejo por contornar os segredos da psicanálise pode sair bastante prejudicado, reprimido por um Supereu que nos constrange a ter tudo sob controle. Uma vez escutei do analista Henrique Mandelbaum a seguinte observação: “Freud tinha a dignidade de deixar-se ser levado pela teoria em vez de levar a teoria consigo”. Essa imagem parece que ajuda a afrouxar um pouco o nó, porque nos prescreve sensatez e um certo grau de leveza, ainda que essa leveza deixe muitas coisas no ar, inclusive a nossa angústia. O que é ótimo, porque é com ela mesmo que a gente trabalha.

Se o convívio com a falta é a própria condição humana defendida pela psicanálise, defrontar-se com ela é um exercício contínuo de ter que lidar com as limitações de conhecimento e de exercício de poder. Algo sempre falta e tudo sempre depende, e isso é penoso, mas ao mesmo tempo libertador.

Produto

  • Entre Sessões
  • Lucas Liedke
  • Paidós
  • 208 páginas

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