Damas da Lua
Romance premiado da escritora omanense Jokha Alharthi, primeira mulher de língua árabe a vencer o prestigioso Man Booker International Prize, chega ao Brasil com tradução direta do original
POR QUE LER?
Em uma vila de Omã, país da Península Arábica, três irmãs lidam com questões relacionadas ao casamento: uma se casa depois de uma decepção amorosa, a outra por obrigação, e a terceira rejeita propostas à espera do amado que emigrou para o Canadá. É dessa pequena coleção de dramas familiares que parte o enredo de “Damas da Lua”, romance da autora omanense Jokha Alharthi que lhe rendeu, no ano passado, o título de primeira mulher de língua árabe a vencer o Man Booker International Prize, um dos maiores prêmios literários do Reino Unido. O livro chega ao Brasil pela Editora Moinhos, com tradução direta do original pela professora e pesquisadora da USP Safa Abou-Chahla Jubran.
A versão nacional cuidadosamente traduzida adapta o árabe coloquial de Omã para o nosso português “falado” e mantém palavras e expressões transliteradas na língua original, sobretudo aquelas relacionadas ao universo cultural e religioso. Assim o leitor brasileiro conhece o que faz da obra de Alharthi tão especial: não exatamente o tema doméstico, quase vulgar na história da literatura, mas a estrutura temporal e narrativa. Viajando entre épocas e vozes, ela traz à tona uma teia de gerações marcadas pela opressão do patriarcado e da religião e conectadas por relações de amor conturbadas e laços familiares compartilhados — a edição conta, inclusive, com uma árvore genealógica para que ninguém se perca na história.
O livro é o resultado de uma receita que nasce de mãos experientes. Alharthi é professora universitária especialista em Poesia Árabe Clássica, autora de dez livros e a primeira escritora de seu país natal a ser traduzida para o inglês. Antes do grande prêmio britânico, ela já havia levado o Sahikh Zayed, importante premiação do mundo árabe, e o Prêmio Sultan Qaboos de Cultura, Arte e Literatura, promovido pela Unesco.
Quando o sol brilhou, o coração de Sálima se encheu com uma sensação de contentamento: já era avó! Era verdade que esse pedaço de carne vermelha que tinha um nome estranho não herdou nada da beleza da avó, mas era sua neta e de certa forma isso a enchia de orgulho. Ela varreu o quintal e o espargiu com água, surrou o tapete persa vermelho que estava guardado no depósito e o abriu no chão da sala, lustrou um por um todos os recipientes de porcelana dispostos em aberturas nas paredes do quarto do meio e estendeu no chão um novo colchão para Mayya e a recém-nascida. Não permitiu que a “desajeitada” Khawla preparasse o pão, ela mesma o fez e o misturou com manteiga derretida e com o mel das montanhas e depois cuidou para que a filha comesse tudo até a última bocada e bebesse todo o leite fervido com feno-grego até a última gota. Preparou o café com cardamomo e um prato de frutas e tâmaras. Colocou dois frascos de perfume e uma pequena xícara de açafrão sobre uma bandeja dourada ao lado do incensário. Arrumou o café, os pratos e a bandeja de perfumes na sala para que tudo estivesse pronto para a esperada visita das vizinhas. Banhou-se com a água misturada com suas ervas especiais – o sabão jamais tocou sua pele desde que nascera –, vestiu sua melhor roupa e sentou-se no chão ao lado de sua filha calada.
De repente, uma voz alta encheu o quintal: “Bismillah, machallah, allahumma salli ala n-nabi, allahumma salli ala l-habib. Em nome de Deus, o bondoso, que a cegueira alcance o olho de quem tem inveja, bênção de Deus, é a primogênita e é menina e menina cria seus irmãos, que seja seguida por dez meninos”. Sálima cutucou a filha e cochichou: “Não se levante para ninguém! A queridinha do velho já chegou!”. Zarifa atravessou a sala pausadamente, sem deixar de proferir o nome de Deus. Seus pés sentiram o toque delicado do tapete persa, afastou o pano transparente que cobria o prato das frutas e deu-lhe uma olhada avaliadora, virou a colherzinha de prata na xícara do açafrão para se certificar de sua consistência, depois seguiu o caminho em direção do quarto do meio.
“Bem-vinda, Zarrúf”, disse Sálima num tom sarcástico. “Se adiantou, podia ter esperado um tempinho, uns dez dias, não me leve a mal, minha perna dói e não posso me levantar para cumprimentar você.” Zarifa jogou seu corpo enorme no chão perto do colchão da Mayya e respirou devagar e disse: “Não se preocupe, meu bem, desde quando você se levanta para Zarrúf?”. Virou o enorme anel de prata no seu indicador direito, encostou levemente no almofadão e perguntou: “Como está, Mayya? Parabéns por sua saúde e bem-estar e pela recém-nascida também. Me perdoa por não ter vindo antes, mas Sanjar, meu filho, acabou de ter mais uma menininha”.
“Mabrukên, não ficamos sabendo”, comentou Sálima. Zarifa acomodou-se aproximando mais da Mayya e disse: “Ontem, a víbora deu mais uma menina para Sanjar e ficamos ocupados”.
De frente para Zarifa, Sálima aproximou-se mais da filha e disse: “E hoje? Onde esteve desde a alvorada, não podia ter vindo ver a filha de seu senhor? Mas, não faz mal, como diz o ditado: ‘O pé é ligeiro quando o coração é amoroso, mas quando não, é moroso’”.
Zarifa se esticou, apertou os olhos e disse: “Não, meu bem, mas sabe que o velho só come o pão da Zarifa, e o provérbio certo é: ‘Ama a quem tem amor por você e se afasta de quem não te quer por perto’. De qualquer forma, consigo ver que ninguém veio ainda para que lhe seja servido o café. Mayya, passe a pequena para benzê-la”. “Ela precisa mamar agora”, Sálima retrucou. Zarifa balançou os ombros num gesto dançante e disse: “O peixe é bom, aumenta o leite”. “Mas não para quem acabou de dar à luz, Zarrúf.” E rindo alto Zarifa continuou: “O ditado diz: ‘Faça a vontade do doente, pois Deus é quem cura’. Mas para que peixe salgado, se meu amo Abdallah já lhe trouxe quarenta galinhas? Bonzinho que é, até para a víbora do Sanjar trouxe galinhas vivas, manteiga e mel também, e mais, ela não quer que eu cozinhe para ela. Como diz o ditado: ‘Quando o burro fica saciado, começa a dar chute’. Ela se esqueceu de que, antes de se casar com meu filho, nem túnica ela tinha para cobrir o corpo. Que dó de você, Sanjar, meu filho, tinha que acabar junto com aquela víbora”. “Vai, minha filha, senta para amamentar sua filha”, disse Sálima irritada. Mayya se ajeitou quando Zarifa comentou: “Aquela víbora que meu filho tem amamenta deitada como as cadelas e deu o nome de Racha para sua filha. O coitado do meu filho não disse nada e o que ia dizer? Ela o picaria se fizesse isso, em vez de dar nomes como Habiba, Mariam, Fátima, dão esses nomes como Mirvat, Rabáb, Nabáb, Chakáb, Dadáb, ou sei lá que diabos mais. Que mundo é esse! E você, Mayya, que nome deu a sua filha?”.
“London”, disse sem levantar os olhos do rostinho da criancinha que sugava seu seio.
Zarifa abaixou a cabeça, calou-se e em seguida mexeu seu corpo enorme e disse: “É melhor eu ir preparar o almoço para você”.
Sálima respirou aliviada quando Zarifa se levantou deixando o quarto em direção à cozinha. Por um instante, teve a impressão de que a cor azul da tinta a óleo das paredes do quarto estava mais escura do que deveria, mesmo assim, ela preferiu que a filha se recuperasse ali mesmo porque era um quarto quente, decorado com os preciosos pratos de porcelana acomodados nas aberturas das paredes, além do baú de madeira que ela repintou e refez seus desenhos dourados, junto às almofadas e aos assentos bordados e cobertos por seda indiana. Sálima sempre foi cuidadosa ao decorar e enfeitar tudo, exceto seu corpo.
Quando a mulher do muezim pediu licença para entrar, Sálima correu até a porta da entrada para recebê-la. Zarifa apareceu da cozinha que ficava no canto leste do pátio e balbuciou: “Olha só, parece que as pernas da Sálima ficaram boas e ela pode levantar”, e com uma voz alta continuou enquanto as duas mulheres se cumprimentavam calorosamente, “Como diz o ditado: ‘O amado é amado, faça sol ou faça chuva, o desamado é desamado trouxesse ele mel ou uva’”, depois deu um tapa na própria coxa e desapareceu na cozinha de novo.
Sálima e a mulher do muezim – que chegou à cidade há muito tempo, de Samáil, no interior, e cujo nome foi esquecido rapidamente, após começarem a chamá-la de “mulher do muezim”, enveredaram na conversa de assuntos variados ao lado da Mayya, que olhava, em silêncio apático, para a sua filha.
Assmá aproximou-se, sentou-se perto delas e disse: “Olha, mãe, você precisa fazer esta mistura para Mayya, como na receita no livro Frutas para o viajante, se faz assim…”. Sálima a interrompeu rindo: “Eu não preciso dos livros de medicina nem dos doutô para me ensinar o que fazer para minha filha, criei cinco pessoas sem precisar de ninguém. E olhe lá, seus olhos vão pular para fora de tanto que lê esses livros. Vamos, vamos tomar café”.
“Veja, Mayya”, disse Assmá, “a medicina moderna estabeleceu que tâmara é bom para as mães no pós-parto, como consta também no Alcorão quando Maria balançou a palmeira, e ratban, tâmaras frescas, caíram sobre ela”. Assmá pronunciou ratban com a marca gramatical final, para impressionar a mulher do muezim, mas a mãe puxou-a pela mão, repreendendo:
“Deixa Mayya em paz, ela comerá sozinha, quando sentir vontade.”
“Por quê?”
“Porque está impura no momento, não deve acompanhar os outros comendo do mesmo prato”, sussurrou a mulher do muezim.
Assmá não gostou, pois tinha certeza de que havia um hadith do profeta que dizia ser permitido às mulheres comerem e beberem na companhia dos outros, independentemente de sua condição, mas preferiu não dizer nada relacionado com a religião na presença da mulher do muezim.
- Damas da Lua
- Jokha Alharthi
- Editora Moinhos
- 240 páginas
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