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Trecho de livro

Coisa que Não Edifica Nem Destrói

O comediante português Ricardo Araújo Pereira fala desavergonhadamente de humor em ensaios curtos sobre a inglória tarefa de fazer rir

Leonardo Neiva 28 de Março de 2025

“Coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.” Se você está familiarizado com o trecho introdutório de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, percebeu logo de cara a brincadeira que dá título ao novo livro do humorista e cronista português Ricardo Araújo Pereira. Se Machado de Assis usava a expressão para designar a filosofia “agora austera, logo brincalhona” que permeia sua obra clássica, aqui a tal “Coisa que Não Edifica Nem Destrói” (Tinta-da-China Brasil, 2025) é o humor em si.

O autor, que é também colunista da Folha de S.Paulo e membro do coletivo lusitano Gato Fedorento, lança nas primeiras páginas uma advertência. Neste livro, “fala-se desavergonhadamente de humor”. De fato, nos 15 textos curtos que compõem a obra, apesar de referenciar desde escatologias e absurdos como cozinhar bebês até pugilismo e “viagra espiritual”, o foco é um só: aquilo que nos faz rir. E, na posição de humorista, Pereira vai logo avisando que, ao tratar do tema, não está quebrando sua magia, muito menos destruindo sua espontaneidade. “Isto do humor tem tanto de místico como qualquer outra forma de escrita — ou de trabalho. Nada.”

A partir daí, convoca clássicos como Homero, Shakespeare e Pessoa, mas também figuras como o super-herói Deadpool, para ajudá-lo na inglória tarefa. E passeia pelas origens obscuras do próprio termo — na Idade Média, humores eram os quatro fluidos responsáveis pelo equilíbrio corporal do ser humano — e por discussões contemporâneas, como o eterno debate sobre os limites do humor. A obra traduz para as páginas e para o público brasileiro episódios do podcast de mesmo nome do humorista, sucesso de audiência em Portugal.

Assim como em “Estar Vivo Machuca” (Tinta-da-China Brasil, 2022), Pereira parte da piada para falar de coisa séria, embora também trilhe com frequência o caminho contrário. Em suas inúmeras definições sobre o humor, nenhuma delas definitiva, aponta porque a atividade da comédia pode ser tanto motivo de encanto quanto de escárnio: “O riso é uma manifestação física. É do domínio do corpo — e o corpo é bastante menos nobre do que o espírito”, escreve no trecho abaixo.


Em 1997 conheci, na redacção do Jornal de Letras, um jornalista da velha guarda chamado José Manuel Rodrigues da Silva. Às vezes, em dias de fecho de edição, naquelas alturas de maior aperto, ele dizia uma frase que tem sido uma espécie de lema da minha vida: “Vamos! A vitória é difícil mas é deles”. Como todos sabemos, a frase original, que pretende motivar e inspirar, é: “A vitória é difícil mas é nossa”. A frase do meu amigo parece‑me muito melhor, por várias razões. Primeiro, ao admitir que vamos perder, tira‑nos a responsabilidade de ganhar, que é um peso difícil de suportar. Segundo, diz que a vitória dos outros será difícil, o que constitui uma pequena vingança agradável para nós. Terceiro, não vende falsas esperanças: a vida, de um modo geral, é derrota, sim. Quarto, indica que, apesar da quase inevitabilidade da derrota, isso não é razão para perder o ânimo. Por último, e mais importante que tudo: dá vontade de rir a quem está aflito, subjugado pela preocupação.

A vitória do humor é, precisamente, ser a admissão de uma derrota. Mais: não é apenas a admissão de uma derrota, é a admissão festiva de uma derrota

Ora, eu acho que a vitória do humor é, precisamente, ser a admissão de uma derrota. Mais: não é apenas a admissão de uma derrota, é a admissão festiva de uma derrota. É isso que é estranho — e, para algumas pessoas, até repelente — no humor: que alguém celebre um desaire. É o oposto das mensagens dos livros de auto‑ajuda, o rigoroso inverso do lema da pandemia: é dizer que não, não vai ficar tudo bem. E retirar disso uma espécie de contentamento. Há quem não perceba a razão de ser desse modo de proceder. Mas o humor assenta quase sempre nessa atitude paradoxal, que é simultaneamente lúgubre e galhofeira. Uma mistura bizarra. É o espírito que está presente, por exemplo, nesta canção:

Enjoy yourself, it’s later than you think/
Enjoy yourself, while you’re still in the pink/
The years go by, as quickly as you wink/
Enjoy yourself, enjoy yourself, it’s later than you think

Este conselho dos The Specials (“aproveita enquanto podes porque isto não dura muito”) é antigo — mesmo muito antigo —, e parece sensato. Se calhar podemos argumentar que cada piada é uma reedição deste conselho — não pelo que a piada diz, mas pelo efeito que pretende provocar. Esse efeito, curiosamente, não tem grande prestígio — o que até certo ponto se compreende. O riso é uma manifestação física. É do domínio do corpo — e o corpo é bastante menos nobre do que o espírito. O riso é barulhento, provoca uma convulsão que desfigura o rosto e faz com que as pessoas percam o controlo de si mesmas. O sorriso, por exemplo, é civilizado, mas o riso tende a ultrapassar a fronteira da decência. Parece que humor e riso estão — e eu diria que estão orgulhosamente — do lado do que é reles. Estão mais do lado do profano que do sagrado, mais do lado do caos que da ordem, mais do lado do abjecto que do sublime, mais do lado do feio que do belo, mais do lado do obsceno que do casto. Têm afinidades muito problemáticas com a loucura, o mal e o excesso. Ao passo que a atitude séria se caracteriza pela busca de sentido, o humor e o riso exprimem um certo comprazimento com o absurdo. E também me parece que o humor está claramente mais do lado da desilusão do que da esperança.

Parece que humor e riso estão — e eu diria que estão orgulhosamente — do lado do que é reles. Estão mais do lado do profano que do sagrado, mais do lado do caos que da ordem

A esse propósito, a última definição que vou propor é o título disto: coisa que não edifica nem destrói. É uma frase das Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, que a Tinta‑da‑China edita na sua magnífica colecção de literatura humorística. Uma completa e feliz coincidência, como calculam.

Uma vez, alguém pediu ao Woody Allen que escolhesse os seus cinco livros preferidos e um dos que ele indicou foi este. Ficou impressionado — a palavra que ele usou foi “shocked” — por o livro ser tão encantador e divertido. “Não queria acreditar que era de um autor de uma época tão longínqua”, disse ele. “É tão moderno e divertido. É uma obra muito, muito original.” E continua: “É sobre um assunto de que gosto e que o autor trata de um modo muito espirituoso, com grande originalidade e nenhum sentimentalismo”. Não admira, uma vez que o sentimentalismo é inimigo — talvez o maior inimigo — do humor.

O livro é bastante invulgar, até porque é escrito por um defunto. Não estou a revelar nenhuma surpresa, porque sabemo‑lo desde o título. São memórias póstumas. E o livro está dedicado “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”, o que também é bastante inusitado. Logo no início, dirigindo‑se aos leitores, o autor diz que escreveu “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, e previne que “não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio”. E pouco mais à frente aparece então a frase que dá o título a este livro. É a descrição daquilo que ele está a escrever, das suas memórias:

Obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.

O sentimentalismo é inimigo — talvez o maior inimigo — do humor

Sei que certos espíritos ficarão desconsolados com a ideia de que o humor possa ser isto, uma coisa que não edifica nem destrói, mas creio que a disposição humorística é avessa a grandes aspirações, e inclina‑se a considerar pretensiosa — e até ridícula — a intenção de edificar ou destruir. Tanto o que julga ter a missão de edificar como o que se sente habilitado para destruir estão forçosamente convencidos da sua própria importância. E parecem incapazes de conceber que, entre a edificação e a destruição, há várias outras atitudes possíveis e estimáveis. Além disso, o humor é uma espécie de antídoto para o fanatismo, é anti‑dogmático. E por isso é natural que, sendo embora mais do que passatempo, seja sempre menos do que apostolado.

Produto

  • Coisa que Não Edifica Nem Destrói
  • Ricardo Araújo Pereira
  • Tinta-da-China Brasil
  • 240 páginas

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