As Filhas de Safo
Entre real e ficção, Selby Wynn Schwartz entrelaça histórias de artistas que contestaram a condição feminina e ajudaram a forjar identidades queer ao longo do tempo
Safo é até hoje uma das poetas e vozes artísticas femininas mais influentes do mundo, motivando discussões contemporâneas sobre sexo, feminismo e gênero. Tanto o nome da artista grega, que viveu no século 6 a.C. quanto a ilha de Lesbos onde morou passaram também a nomear as relações amorosas e sexuais entre mulheres. É a partir dos escritos dessa figura cada vez mais estudada e referenciadas nos dias de hoje que a escritora e professora universitária norte-americana Selby Wynn Schwartz propõe entrelaçar realidade e ficção em seu livro “As Filhas de Safo” (Autêntica Contemporânea, 2025), que ganha tradução da autora brasileira Nara Vidal.
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Indicada ao prêmio Booker Prize, um dos mais prestigiados da literatura global, a obra narra a história de ícones como Virginia Woolf (1882-1941) e Gertrude Stein (1874-1946), mas também de nomes menos conhecidos do público contemporâneo, como a multiartista Eva Palmer (1874-1952) e a escritora Rina Faccio (1876-1960), sobre a qual Gama reproduz o trecho abaixo. Em comum, todas essas artistas e pioneiras do final do século 19 e início do 20 compartilham narrativas de revolta contra a condição feminina de sua época, reivindicando o direito às suas próprias vidas e sexualidades, ajudando a forjar identidades queer.
Além de informações reais sobre suas trajetórias, Schwartz lança mão de momentos ficcionais para amarrar os laços que conectam essas mulheres reais numa rede ainda mais extensa de amantes e maneiras de amar. Numa narrativa fragmentada em trechos curtos, com títulos reveladores, a autora evidencia também os muitos nomes e identidades que elas precisaram usar durante a vida, fossem como instrumentos de prisão ou libertação. Com tema e estilo que remetem aos clássicos de Anne Carson, o livro forma um verdadeiro catálogo de intimidades, sexualidades, desejos e sonhos que povoam a existência feminina ao longo dos séculos.
RINA FACCIO, n. 1876
Quando menina, Rina Faccio vivia em Porto Civitanova e fazia tudo que lhe mandassem fazer. Seu pai lhe disse para trabalhar no departamento de contabilidade da fábrica e ela obedeceu. Rina tinha doze anos, era submissa; e seus cabelos, compridos e escuros.
Na fábrica eram produzidas garrafas de vidro, milhares por dia, tingindo o ar de uma fumaça ferruginosa. Rina se encarregava das quantidades, de quanto de sulfato de sódio era levado para as fornalhas nos ombros dos tantos portantini, meninos que trabalhavam oito horas por dia por uma lira. Não havia escola em Porto Civitanova, por isso Rina tentava ensinar a si mesma como dar conta de tudo isso.
RINA FACCIO, 1889
Em 1889, a mãe de Rina disse à filha, sem palavras, algo de que ela nunca se esqueceria. A mãe estava em pé diante da janela, olhando para fora, usando um vestido branco com as alças que deslizavam pelos ombros. Então, de repente, a mãe caiu da janela. Desmoronou, com seu vestido trêmulo, como um rasgo de uma folha de papel. Seu corpo precipitado de dois andares, dobrado em péssimo estado. Foi isso que a mãe de Rina Faccio disse a ela.
NIRA E RESEDA, 1892
Nira foi a primeira troca de nome que Rina fez. Ela queria escrever para o jornal local, mas tinha medo de que seu pai descobrisse.
Quando Rina Faccio fez quinze anos, deixou para trás os anagramas. Escolheu o nome Reseda porque a fazia se lembrar de recita, um verbo para atrizes, que significa: ela faz o papel, ela recita sua fala. Quando seu pai bradou da sala de estar sobre as opiniões impressas dessas desavergonhadas que apareciam nos jornais, fossem quem fossem, Rina Faccio levantou os olhos do bordado com uma expressão tão vazia quanto uma folha em branco.
RINA FACCIO, 1892
Apesar de ter recebido o aviso mudo da mãe, Rina Faccio não previu seu destino. Ela somava e subtraía, obediente, os números da fábrica, mantendo sempre em dia as cadernetas de contabilidade. Um homem que trabalhava na fábrica vinha circundando-a. Ele tinha as mãos grossas que puxavam alavancas, um hálito que subia pela sua nuca. Ela não se deu conta dele até que o círculo se tornou muito estreito, e então era tarde demais. Seu vestido foi levantado. Ela gritou, mas só a palma grossa da mão do homem conseguiu ouvi-la.
Nira foi a primeira troca de nome que Rina fez. Ela queria escrever para o jornal local, mas tinha medo de que seu pai descobrisse
RINA PIERANGELI FACCIO, 1893
Assim que o pai de Rina soube que ela fora possuída pelo homem, não havia nada a ser feito a não ser transferi-la a ele, por sobrenome e lei. Os artigos da lei italiana obrigavam uma filha a se tornar esposa pela palavra do pai. Em particular, o Artigo 544 do Código Penal era como uma mão de ferro manipulando meninas de dezesseis anos à posição de noivas dos mesmos homens que as pisotearam.
No inverno, Rina foi levada de uma casa a outra, fraca e confusa. Na casa de seu pai, suas duas irmãs sentaram-se em silêncio, com os bordados nas mãos, enquanto a mãe, ou o que sobrou dela, era mandada para um sanatório em Macerata. Não havia palavras para o que acontecia na casa do marido a quem, agora, Rina pertencia. Depois de Rina Pierangeli Faccio ter sido entregue a ele, junto com alguns móveis de sala de jantar, as cortinas se fecharam. Quando nos primeiros meses ela sofreu um aborto, em um fluxo febril de sangue, ela não perguntou a razão. Mas sentiu brotando em si um ódio revoltoso pela vida, essa vida, a dela.
O CÓDIGO PISANELLI, 1865
Os políticos saudaram o Código Pisanelli como um triunfo da unificação da Itália. O novo Estado estava ávido para crescer em pleno potencial, alongando-se ao comprimento de toda a península e cobrindo a população com suas leis. Como disse um político: Fizemos a Itália; agora precisamos fazer os italianos.
Sob o Código Pisanelli, as mulheres italianas ganharam dois direitos memoráveis: podíamos fazer nosso testamento para distribuir nossa propriedade depois de mortas, e nossas filhas podiam herdar nossas coisas. Nossa escrita, antes da morte, nunca tinha sido tão importante. Na Itália, passamos a considerar que talvez pudéssemos deixar como legado para nossas filhas um pequeno dote a ser penhorado por um futuro.
RINA, 1895
Em 1895, em meio a roupas sujas e hematomas, Rina Pierangeli Faccio deu à luz o filho daquele homem. Um varão. Quando a criança completou dois anos, ela encontrou uma garrafa de láudano e, sem dizer nada, bebeu tudo.
O láudano não matou Rina Pierangeli Faccio, mas aniquilou seus dias como esposa prendada. A mulher que ela foi até aquela noite estava morta, ela disse. O médico prescreveu repouso, o marido a repreendeu, mas Rina só se dirigia à sua irmã.
O láudano não matou Rina Pierangeli Faccio, mas aniquilou seus dias como esposa prendada. A mulher que ela foi até aquela noite estava morta
Geralmente era a primeira coisa que fazíamos quando estávamos mudando: encontrávamos uma irmã e ficávamos com ela, tomando café da manhã no quarto. Ou a encontrávamos em seu quarto e ficávamos lá, fingindo, se necessário, que éramos irmãs. As empregadas arregalavam os olhos, mas, se fôssemos firmes, chá com leite e torrada eram servidos em nosso quarto, em bandejas da largura de nossa cama.
DR. T. LAYCOCK, A Treatise on the Nervous Diseases of Women, 1840
O célebre dr. Laycock de York, ao escrever sobre distúrbios nervosos das mulheres, não pôde deixar de notar que, quanto mais tempo as jovens passavam umas com as outras, mais excitáveis e indolentes ficavam. Era uma condição que podia afetar costureiras, trabalhadoras de fábricas ou qualquer mulher que se relacionasse com outras mulheres.
Em particular, ele alertou, moças jovens não poderiam se relacionar com outras em escolas públicas sem correr o sério risco de excitar as paixões e de serem levadas a saciar-se em práticas injuriosas tanto do corpo quanto da mente. Romances, sussurros, poemas anônimos, educação em geral, dormitórios compartilhados: assim que as meninas começavam a ler na cama, elas começavam a ler na cama juntas. O que podia parecer afeto entre irmãs ou fantasia colegial deveria ser diagnosticado como antecedente pernicioso de paroxismo histérico. Em meio a essas tensões, poderia ser altamente contagioso e levar uma casa inteira ao caos.
EMENDA AO CÓDIGO PISANELLI, 1877
Os direitos que não tínhamos na Itália eram os mesmos direitos que não tivemos por séculos, e por isso não vale a pena enumerá-los. Contudo, em 1877, uma modificação no Código Pisanelli permitiu que as mulheres depusessem como testemunhas. De súbito, legalmente podíamos assinar nosso nome ao lado do que sabíamos ser verdade. Nossas palavras, que antes sempre foram vistas como inconstantes e frívolas, ganharam novo peso quando fixadas em uma página.
Então, começamos também a notar como os contornos de nossas portas e os dotes tinham tamanhos iguais, de modo que uma caixa pudesse ser enfiada em outra, permitindo a transferência da noiva. Ninguém podia deixar o casamento, mas algumas de nós discerniam bem o formato que ele dava à nossa vida. Como disse um político naquela época: Na Itália, a escravidão da mulher é o único regime no qual os homens podem viver felizes. Ele quis dizer que éramos nós o pequeno dote a ser penhorado pelo futuro da pátria.
O que podia parecer afeto entre irmãs ou fantasia colegial deveria ser diagnosticado como antecedente pernicioso de paroxismo histérico. (…) Poderia ser altamente contagioso

- As Filhas de Safo
- Selby Wynn Schwartz (trad. Nara Vidal)
- Autêntica Contemporânea
- 272 páginas
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