Conheça a história e as reinvenções do humor — Gama Revista
Tá rindo de quê?
Icone para abrir
Buster Keaton

4

Reportagem

Humor tem data de validade?

Nem todo humorístico deve sobreviver ao tempo, mas comédia segue se perpetuando e se reinventa mais no conteúdo que na forma

Leonardo Neiva 25 de Julho de 2021

Humor tem data de validade?

Leonardo Neiva 25 de Julho de 2021
Buster Keaton

Nem todo humorístico deve sobreviver ao tempo, mas comédia segue se perpetuando e se reinventa mais no conteúdo que na forma

A sensação vem com alguma frequência. Seja numa reprise na TV aberta — algo que se tornou ainda mais comum durante a pandemia —, no YouTube, no streaming ou em qualquer outro meio. A pessoa se depara com um programa humorístico ou filme de comédia antigo e, com dificuldade, solta no máximo uns poucos sorrisos amarelos, só para não parecer chato.

Não importa se tem algumas décadas de idade ou apenas uns poucos anos, as piadas soam estranhas, fora de lugar. A tal graça, tão difícil de encontrar, se baseia em referências históricas hoje desconhecidas ou pouco relevantes. Os personagens desfilam uma constrangedora passarela de preconceitos, e a coisa toda simplesmente não funciona como deveria.

Cenas assim vêm ocorrendo com tanta gente que a comédia em si já ganhou uma fama um tanto negativa: a de ter prazo de validade. Isso ao menos se comparada a outros gêneros considerados mais atemporais, como o drama.

Hoje é comum encontrar relatos de pessoas que decidiram rever quadros do finado programa “Pânico na TV” (2003-2012) — grande sucesso das noites de domingo há não muito mais que uma década — e passaram a se perguntar como era possível terem rido daquilo semana após semana. O mesmo vale para programas como “Zorra Total” (1999-2015) — aquela versão que até virou sinônimo de “humor ruim” e teve que passar por uma reformulação —, “Os Trapalhões” (1966-1995) ou “Viva o Gordo” (1981-1987), entre muitos outros exemplos.

A comédia pastelão unida a um drama melancólico de ressonância universal segue funcionando às mil maravilhas

Ainda assim, essa data de validade curta não pode ser tida como uma regra. A comédia pastelão unida a um drama melancólico de ressonância universal, características que marcam os melhores trabalhos de Charles Chaplin, segue funcionando às mil maravilhas mesmo um século depois, apesar das limitações técnicas que nos separam.

Clássicos como “O Gordo e o Magro”, os filmes de Buster Keaton e os de Harold Lloyd ou mesmo desenhos animados com muitas décadas de existência, todos baseados no humor físico, seguem fazendo a alegria de muita gente. E até filmes de comédia com uma veia humorística diferente, a exemplo de “Quanto Mais Quente Melhor” (1959), “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado” (1975) e “Curtindo a Vida Adoidado” (1986), fazem rir muito ainda hoje.

Mas afinal, onde está a verdade? O humor começa de fato a apresentar rugas de velhice muito cedo? Ou tudo não passa de piada pronta?

O Gordo e o Magro

Tudo igual, porém diferente

Como qualquer forma de expressão cultural, o humor muda com o passar do tempo, afirma o professor de história da USP Elias Thomé Saliba, um dos maiores especialistas em história do humor no Brasil. “Piadas são códigos culturais que as sociedades produzem em determinada época. Cabe a nós, intérpretes, decifrá-las”, diz.

Humor não é sinônimo de riso, mas uma forma de lidar com o turbilhão da vida

Segundo Saliba, o humor é algo bastante variado e difuso, com diferentes usos na sociedade ao longo da história. E ele envelhece, sim, lembra o pesquisador, mas não de maneira muito diferente de outras formas de expressão. Humor, aliás, não é sinônimo de riso, e sim uma forma — ocasionalmente a única — de lidar com o turbilhão da vida, como aponta o historiador.

Algumas linguagens dentro do humor são universais, e por isso seguem e seguirão funcionando. Um exemplo é a linguagem lúdica, nascida da pantomima de palhaços e bufões. “Não há quem não ria do Carlitos, por exemplo”, aponta Saliba. Portanto, a anedota, as expectativas que viram surpresa, o solavanco mental da piada, o timing certo para uma tirada espirituosa, todas essas são técnicas universais que, quando bem executadas, não tem erro: arrancam gostosas gargalhadas.

Humor através dos séculos

Se na Antiguidade o humor era um evento coletivo, que unia esfera pública e privada, na Idade Média ele ganhou mais destaque graças à figura popular do louco. Geralmente homens expulsos ou renegados de monastérios, os loucos constituíam um universo à parte da Igreja e da sociedade, caracterizado pela vagabundagem, o crime e a diversão. Segundo Saliba, eles acabaram influenciando o surgimento do bobo da corte, figurinha carimbada nas monarquias a partir dos últimos séculos da Idade Média.

O palhaço, o comediante lúdico e o ator de cinema pastelão são herdeiros do descontrole corporal que se costuma associar à loucura

“O palhaço, ou clown, herdou do bobo da corte esse uso de uma forma socialmente licenciada da comédia”, declara. Portanto, o palhaço, o comediante lúdico e o ator de cinema pastelão são, de certa forma, sobreviventes dessa época, herdeiros do descontrole corporal que se costuma associar à loucura e até hoje se traduz num tipo de comédia bastante físico, de riso solto e fácil.

No final do século 20, o filósofo francês Gilles Lipovestky resolveu apontar, em seu livro “A Era do Vazio” (Edições 70, 2013), que a sociedade, saturada de sinais humorísticos, acabou vendo atrofiar sua capacidade de rir. “A faculdade de rir regride e um certo sorriso substitui a risada solta. Recolhidas dentro de si mesmas, as criaturas contemporâneas têm cada vez mais dificuldade de cair na gargalhada, de sair de si e sentir entusiasmo por algo, entregar-se à alegria”, afirma Saliba. Assim, segundo essa teoria, o riso se torna algo trivial, cool mas vazio de sentimento.

Monty Python

Com o riso espalhado para todo lado, dos memes e posts engraçados em redes sociais às piadas prontas de políticos, de forma paradoxal, o humor em si se torna uma espécie em extinção, aponta o historiador. Afinal, quando todos nos tornamos produtores de humor, ele fica trivial e perde o impacto de antes. Por outro lado, é inegável a força agregadora dos memes. “É uma linguagem de humor relativamente recente, da qual todo mundo pode participar. A ‘memética’ possui uma energia coletiva enorme, decorrente da incontrolável velocidade de sua disseminação.”

O riso, a piada é essencialmente alteração de sentido, reversão de significado

É também um formato que catalisa parte da cultura popular de nossa época porque, como em outros momentos da história, serve de arma social para os impotentes. “Se não se pode mudar a história real, muda-se o sentido dela. O riso, a piada é essencialmente alteração de sentido, reversão de significado”, declara Saliba. Uma mudança que pode, no fim das contas, alterar a própria história.

Portanto, dá para dizer que a linguagem humorística é “uma irreconhecível sintaxe silenciosa que fica por trás de toda piada, é peculiar a cada povo e a cada época”, como descreve afinal o historiador.

O que é imortal

O exemplo padrão da linguagem humorística trabalha com um recurso chamado “não confiável”, diz a professora da Unifesp Ana Cristina Carmelino, especialista em linguística e estudiosa de textos humorísticos. A ideia é criar logo de início um contexto de seriedade, para só depois descortinar o não sério, o cômico, que conduz finalmente ao riso.

Em termos de técnicas de linguagem, pouca coisa mudou em muitos séculos, aponta a professora. “A diferença está mesmo nos elementos culturais e históricos do presente, bem distantes dos de outros tempos.” Dessa forma, o humor dito imortal, aquele que permanece, é o mais ingênuo e menos crítico, como o que o Chaplin fazia ou mesmo o “Chaves” (1971-1980), que marcou gerações de brasileiros.

Por outro lado, mudanças de visão e contexto naturais na sociedade também fazem com que coisas que antes provocavam riso hoje já não tenham tanta graça. “Piadas sobre o atual governo brasileiro não terão o mesmo sentido daqui a dez ou vinte anos”, exemplifica Carmelino. E o mesmo vale para questões ligadas ao preconceito e o politicamente correto.

Charlie Chaplin

O racismo como divertimento

À mesa de um restaurante italiano, um grupo de amigos conversa com o garçom. O único negro dos três pede um “uisquinho sem gelo”, ao que é prontamente xingado de “boi da cara preta”. Nos minutos seguintes, também é chamado de “galinha de macumba” e “morcegão” pelo garçom e por outro cliente, mas acaba sendo aconselhado pelos colegas a não arranjar confusão.

Cenas típicas de preconceito e racismo eram protagonistadas por Mussum em ‘Os Trapalhões’

A típica cena de preconceito não é um retrato infeliz do cotidiando, mas faz parte de um esquete do humorístico “Os Trapalhões”. Como hoje já se tem consciência, no programa o personagem Mussum era frequentemente submetido a tratamentos racistas como forma de divertir o público. Mesmo com a existência de defensores do politicamente incorreto, trata-se de algo impraticável na comédia contemporânea — o que não significa que não haja muitos escorregões por aí, seguidos de pedidos de desculpas protocolares.

“Na época acontecia e não tinha as mesmas críticas porque, no Brasil, os movimentos sociais ainda estavam se estruturando”, diz Mateus Pranzetti, que pesquisa o humor e o politicamente incorreto há mais de dez anos. Hoje, no entanto, é impossível que esse tipo de coisa passe batido, aponta o pesquisador e pós-doutorando em psicologia na Unesp de Assis, no interior de São Paulo. Ou seja, nesse caso o tal envelhecimento do humor está ligado ao que já não é mais aceitável em uma sociedade.

Piada com legenda

No caso de quadros com um fundo político ou de crítica social, seria necessário algum tipo de legenda ou explicação. Caso contrário, os espectadores do futuro terão grande dificuldade de entender o que se passa — e, o que é pior, de achar alguma graça naquilo. “Não faz muito tempo, o Porta dos Fundos soltou um vídeo sobre a vacina da Pfizer. De fato, daqui a cinco anos, vai ser preciso bastante contextualização para explicar o que significa.”

O humor trata de grandes temas humanos. Na comédia grega, muita coisa ainda faz sentido

No entanto, como aponta o especialista, os grandes temas seguem sendo relevantes e compreensíveis, não importa em que década ou século estamos. “E o humor em geral trata de grandes temas humanos”, diz Pranzetti. “Se a gente pegar uma comédia ou uma tragédia grega, muitas coisas ainda fazem sentido. É possível se identificar com os dilemas humanos, as dúvidas, as traições, a raiva contra quem está no poder.”

Em termos de formato, tanto o “Zorra Total” original, considerado um tipo de humor que “envelheceu mal”, quanto o Porta dos Fundos, muito conectado com o público de hoje, são formados por esquetes, aponta o pesquisador. Ou seja, o prazo de validade está muito mais ligado a uma questão de linguagem e espírito do tempo que de formato.

“Não só a comédia, mas tudo está ligado ao contexto histórico, a processos culturais e sociais. O envelhecer tem muito a ver com isso, como os discursos vão se modificando e circulando, mas a estrutura da comédia é muito matemática, praticamente não muda.”