Trecho de Livro: Estar Vivo Machuca, de Ricardo Araújo Pereira — Gama Revista

Trecho de livro

Estar Vivo Machuca

Livro reúne crônicas do humorista português Ricardo Araújo Pereira, que parte da piada para falar sobre coisa séria – e vice-versa

Leonardo Neiva 08 de Julho de 2022

Membro do coletivo de comédia português Gato Fedorento, uma das principais e confessas inspirações para o nosso Porta dos Fundos, o humorista Ricardo Araújo Pereira não chega a liderar a lista das celebridades mais conhecidas além-mar – o primeiro lugar, previsivelmente, ficou com Cristiano Ronaldo –, mas conseguiu o topo de outro ranking importante: o das figuras públicas que mais geram empatia entre os lusitanos. O resultado da pesquisa, realizada pelo Grupo Marktest, sugere que, em meio às tiradas irônicas e invariavelmente hilárias, RAP, como é mais conhecido, consegue abordar temas, relevantes ou não, de uma forma que fala diretamente aos anseios do público.

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E isso não só em Portugal, mas também por aqui. A principal prova é seu livro “Estar Vivo Machuca” (Tinta-da-China Brasil, 2022), que reúne algumas das melhores crônicas que publicou tanto na revista portuguesa Visão quanto no jornal Folha de S.Paulo, onde Pereira segue como articulista. Selecionados pelo escritor e antropólogo brasileiro Gustavo Pacheco, os textos não se limitam a alguns poucos temas de destaque, mas sim fazem um retrato da complexidade que é viver hoje, abordando desde a política de Bolsonaro e pronomes neutros até questões milenares como o eterno dilema entre cães e gatos.

O prefácio da edição é da escritora e também colunista da Folha Tati Bernardi, que revela ter aprendido com o português que “a besteira pode ser a coisa mais séria do mundo” e o descreve como “um dos cronistas que hoje melhor transformam ideias aparentemente chistosas em profundas elucubrações sobre a natureza humana”. Tendo vindo recentemente ao Brasil para apresentar ao lado de Gregorio Duvivier o espetáculo “Um Português e um Brasileiro Entram num Bar…”, RAP apresenta seus talentos de forma mais econômica – e, em entrevista à Folha, coloca em dúvida os achados de pesquisas como a citada aqui. “As pessoas que moram comigo dizem que, se esses estudos fossem feitos lá em casa, o resultado seria bastante diferente.”


Lava Jato lavada a jato

Quando Jair Bolsonaro disse que tinha acabado com a Lava Jato, muita gente hipócrita e maldosa começou a acusá-lo de ter dito que tinha acabado com a Lava Jato. É impressionante como a imprensa consegue distorcer as palavras de uma pessoa. Por isso, no dia seguinte, o presidente achou-se na obrigação de vir esclarecer as suas declarações, para evitar mal-entendidos: a Lava Jato continuaria, claro, e só ia acabar para ele e para os seus amigos, uma vez que nenhum deles era corrupto. Não poderia haver melhor prova da honestidade e lisura de Bolsonaro do que esta medida anticorrupção. Corrupção seria manter a Lava Jato onde ela não é necessária, desperdiçando os fundos públicos e o tempo das autoridades. Lavar o que já está lavado é desperdiçar água, sabão, e desgastar o material que se lava sem necessidade. Se nenhum membro do Executivo é corrupto, manter a fiscalização seria a demonstração clara de que o governo seria corrupto. O povo não entenderia essa flagrante contradição, e talvez saísse à rua para protestar com violência. As pessoas estão fartas do excesso de fiscalização da corrupção no Brasil. Como todo o mundo sabe, há duas maneiras de viver numa casa sem baratas. Uma é acender a luz da cozinha e matar todas as baratas. A outra é nunca acender a luz da cozinha. A segunda é muito mais tranquila.

Outra vantagem deste processo é o fato de as autoridades terem sido informadas por uma fonte com credibilidade. Quem comunicou às autoridades que o governo não era corrupto foi o governo. Quem melhor do que o governo para saber se o governo é corrupto? Essas coisas sabem-se logo. Se o governo fosse corrupto, o governo seria o primeiro a saber. E este método inovador de investigação traz outros benefícios, uma vez que resolve os tradicionais problemas de morosidade da justiça. É muito fácil e rápido. Basta perguntar às pessoas.

— O senhor é corrupto?

— Não.

— Então boa tarde e desculpe o incômodo.

O sonho de um Brasil sem corrupção está cada vez mais perto. Sublinho a palavra sonho. Quando se acorda, não garanto nada.

Quem melhor do que o governo para saber se o governo é corrupto? Essas coisas sabem-se logo. Se o governo fosse corrupto, o governo seria o primeiro a saber

Boas pessoas são péssimas pessoas

Estávamos à mesa do jantar e a minha filha de treze anos suspirou:

— Estou farta de sexo.

Felizmente para a minha saúde cardiovascular, ela esclareceu depressa o problema: as aulas de educação sexual, na escola, eram muito chatas. Confesso que não sei o que se passa com esta geração. No meu tempo, aulas de educação sexual eram pretexto para sussurros, risadinhas, excitação boba. A gente não aprendia nada, que era a melhor maneira de manter o interesse no tema. Agora, ao que parece, dá bocejo. As explicações são tão exaustivas que eles gostam tanto do assunto como de matemática. Há dias saiu um estudo segundo o qual os jovens de hoje têm cada vez menos interesse por sexo. Eu estava preparado para, na minha qualidade de cidadão que se encaminha para ser velho, desdenhar do gosto das novas gerações no tocante à roupa e à música. Enfim, os clássicos. Mas não esperava ficar desapontado nesta área. Jovens não costumam precisar de ajuda neste capítulo — e, no entanto, fica a sensação de que criamos uma geração de pandas, que também têm fastio de reproduzir-se.

Talvez a questão esteja no excesso. Nós tínhamos de fazer um esforço bastante grande para encontrar imagens de uma pessoa nua. Às vezes, um coleguinha tinha uma revista e levava para a escola, e a gente tinha de ver com atenção para memorizar. Ou fingíamos interessar-nos por fotografia, para ver dois ou três nus artísticos — que são a forma mais desinteressante de nudez. Hoje, eles têm no bolso um celular com acesso a sacanagem organizada por ordem alfabética de tema. É demasiado fácil e demasiado burocrático. Penso muitas vezes no caráter nocivo daquilo que é bom. Por exemplo, ser boa pessoa é uma maldade que se faz aos outros. Quando uma boa pessoa morre, isso inflige-nos uma dor insuportável. Quando más pessoas morrem, elas têm o bom senso de não nos martirizar. Às vezes é um alívio, outras até uma alegria. Quem é boa pessoa sabe que é uma questão de tempo até submeter aqueles que ama a uma tristeza profunda. Quanto melhores as memórias que deixa, maior a mágoa que vai provocar. Uma pessoa decente faria um esforço sério para ser indecente.

Penso muitas vezes no caráter nocivo daquilo que é bom. Por exemplo, ser boa pessoa é uma maldade que se faz aos outros. Quando uma boa pessoa morre, isso inflige-nos uma dor insuportável

Sobre cães e gatos

“Você é uma gata” é um elogio. “Você é uma cadela” é um insulto — e dos pesados. Aqui está um interessante problema de semântica zoológica. De onde vem a má reputação dos cães? Nos livros, aparecem quase só para morrer. A Baleia do Graciliano Ramos, spoiler alert, leva um tiro. O Argos de Ulisses espera pelo dono durante vinte anos e morre assim que satisfaz o desejo de o ver. Mas os gatos têm um prestígio literário impecável. Nem o Cheshire Cat da Alice nem o gatarrão amigo
do diabo em O mestre e Margarida levam um tiro — e mereciam. Anda por aí um famoso espetáculo musical sobre gatos. Não ocorre a ninguém escrever uma ópera rock sobre cães. Os gatos são protagonistas sofisticados, os cães são bobocas sem classe. Quando, há pouco tempo, além dos meus quatro cães passei a ter um gato, comecei a perceber a razão do fascínio. De fato, é um bicho que nos despreza de uma forma muito elegante. Está evidentemente convencido da sua superioridade em relação a nós, e é capaz de ter razão. Mas, apesar de seduzido pelo gato, mantenho-me firme no meu entusiasmo em relação aos cães. Os gatos sabem qualquer coisa; os cães são tão estúpidos como eu — o que lhes dá um encanto muito especial. Os gatos parecem ter uma informação importante acerca do que é isto de estar vivo; os cães não fazem ideia do que andam aqui a fazer. Acham quase tudo espantoso, e não têm vergonha desse maravilhamento constante, apesar de ser tão parecido com estupidez. Os cães são crianças pequenas, os gatos são filhos adolescentes: também nos amam, embora com alguma relutância, e acham mesmo que são independentes, apesar de continuarem a precisar de nós para comer. Um gato é uma fraude ostensiva, uma ironia da natureza: parece um tigre, move-se como um tigre, pensa que é um tigre — mas pesa menos duzentos quilos.

Quando não está a dormir, é bastante óbvio que o meu gato se encontra a planejar o meu homicídio. Mas de um modo adorável. Vejo os olhos dele, quando me espreita, emboscado atrás do computador, e eu próprio começo a simpatizar com a ideia de que mereço morrer. Em raros momentos de ternura, aproxima-se de mim e lambe o meu nariz com o que parece ser lixa para madeira. É carinho e esfoliação. Amor doloroso. O cão é o melhor amigo do homem; o gato é o melhor inimigo.

Os cães são crianças pequenas, os gatos são filhos adolescentes: também nos amam, embora com alguma relutância

Produto

  • Estar Vivo Machuca
  • Ricardo Araújo Pereira
  • Tinta-da-China Brasil
  • 264 páginas

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