Trecho de Livro: Bambino a Roma, de Chico Buarque — Gama Revista

Trecho de livro

Bambino a Roma

Em seus 80 anos de vida, o músico e escritor reimagina a infância passada nas ruas da capital italiana no livro “Bambino a Roma”

Leonardo Neiva 02 de Agosto de 2024

Imagine um pequeno Chico Buarque, calças curtas, ainda um pouco incerto da vida mas curioso com o novo mundo que o cerca, seja nas partidas de futebol contra os garotos da rua, que joga com a bola que diz ter ganhado das mãos de Ghiggia — sim, o uruguaio carrasco do Brasil na Copa de 1950 —, ou na paixão juvenil por Sandy L., garota de cabelos castanhos para quem endereça secretamente suas redações. O cenário: a Roma dos anos 1950, das ruas pelas quais o jovem Chico passeia trepado em sua bicicleta de pneus brancos, pedalando na mesma toada em que percorre suas vivências familiares, as lembranças da escola e os momentos marcantes: a dor da apendicite e a dor ainda maior da derrota do Brasil na Copa do Mundo, que ele vislumbra pela vitrine de uma loja de televisores.

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Na verdade, não é preciso imaginar muita coisa, já que o autor de romances como “Estorvo” (Companhia das Letras, 1991) e “Budapeste” (2003) faz o trabalho para nós em seu novo livro, “Bambino a Roma” (2024). Lançada pouco após o aniversário de 80 anos de um dos maiores compositores, cantores e escritores brasileiros, a obra faz um misterioso equilíbrio entre autobiografia e ficção, esta última assinalada em letras maiúsculas na capa, para não deixar dúvida.

Mas foi mesmo em 1953 que o sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda desembarcou com a mulher e os filhos na Europa, para ensinar estudos brasileiros na Universidade de Roma — viagem da qual o pequeno alter ego do autor lembra principalmente pelos vômitos constantes que acompanharam o balanço do navio. Como em algumas de suas canções, o músico vai entrelaçando aqui as lembranças dos três anos que viveu em terras romanas a um exercício ficcional, de forma que se torna impossível ao leitor, e talvez ao próprio autor, dissociar uma coisa da outra.

Numa escrita que caminha do tom nostálgico do adulto às traquinagens nem sempre tão inocentes da infância, o livro combina o Chico que conhecemos a um indivíduo e artista em constante processo de redescoberta. “Estranho, estranho mesmo era alguma coisa que eu não via, uma coisa que faltava em toda parte”, escreve o homem tentando botar em palavras o estranhamento do menino que chega pela primeira vez ao estrangeiro. Sensação que faz contraste com o abandono e mal-estar que o próprio Chico viveria anos depois na mesma cidade mas num contexto totalmente diferente, dessa vez chegando lá como exilado da ditadura brasileira.


Agarrado à bola de futebol, olhei para trás ao sair de casa na Rua Haddock Lobo 1625, São Paulo, assim que partiu o caminhão de mudança. Vendo a casa tão vazia, com manchas de mobília no chão e de quadros na parede, entendi que a ausência seria longa, talvez para sempre. Zarpamos do Rio, e no convés do Giulio Cesare passageiros se abraçavam e brindavam vendo a cidade se afastar na baía de Guanabara. Eu não olhava a baía, mas sim a espuma que o transatlântico fazia no mar, como que desarranjando o caminho de volta. Durante duas semanas num oceano sem fim, havia muita festa a bordo e jogos no tombadilho, mas se me perguntarem do que mais me lembro, direi francamente que só me lembro de um mar de vômito. Vomitei no mar, no tombadilho, na piscina, no camarote de segunda classe, vomitei amarelo na toalha do restaurante, vomitei no sapato do garçom, eu vomitava os remédios e vomitava em cima do meu vômito com nojo de mim. Vomitei do Rio a Gênova com escalas nauseantes em portos que mal vi, na certeza de que aquele gosto nunca mais ia sair da minha boca. Devia ser ansiedade, pois quando me mostraram ao longe o porto de Gênova, meio que adormeci em pé. Sonâmbulo, não me lembro do cais, do trem, das luzes de Roma, era como se o navio tivesse atracado feito um táxi na porta de casa, Via San Marino 12.

Vomitei do Rio a Gênova com escalas nauseantes em portos que mal vi

Ao rés do chão de um prédio amarelo de quatro andares, o apartamento 2 era antiquado, sombrio, e estava gelado porque tinham se esquecido de ligar a calefação. Minha mãe explicou que o país saíra empobrecido da guerra, terminada poucos anos antes. Ela relutava em matricular os filhos nas escolas italianas, onde havia muita greve e o ensino era atrasado em relação ao nosso. Não era por isso que meu pai vinha dar aulas na Itália, mas na verdade nunca me explicaram direito o motivo da nossa viagem. Estava tudo confuso na minha cabeça, endereços se misturavam nos meus sonhos, e mesmo acordado permaneci num ambiente de sonho por um bom tempo. Estranhos entravam e saíam de casa carregando malas, arrastando baús, consertando torneiras, trocando lâmpadas e resmungando palavras que me soavam a xingamentos. Todos os cômodos eram revestidos com papel de parede, o telefone era de parede, móveis e quadros não eram os nossos, havia famílias de desconhecidos nos porta‑retratos, minha cama parecia a de um velho, de madeira pesada, escura, e cabeceira alta quase até o teto. Porque no estrangeiro é tudo estranho, assim falou uma das crianças, e o dito lá em casa virou mote. Eu não estranhava a língua nova ou a cidade antiga, para tudo isso já estava ensinado. Estranho, estranho mesmo era alguma coisa que eu não via, uma coisa que faltava em toda parte, e de noite eu perdia o sono matutando nisso; era dessas adivinhas difíceis de decifrar e que quando decifra a gente exclama: é claro! Era estranho ver no bonde tantos homens de muletas? Sim, mas não era a isso que eu me referia. Era estranho ver na feira tantas mulheres de luto fechado? Sim, mas não era disso que se tratava. Era um pouco estranho não ter feijão com arroz, mas logo tomei gosto pelas massas que a cozinheira servia todo dia no almoço.

Havia famílias de desconhecidos nos porta‑retratos, minha cama parecia a de um velho, de madeira pesada, escura

Essas cozinheiras não paravam no emprego, elas se sucediam rapidamente e vinham todas da Sardenha. Eu gostava delas, mas sempre gostava mais da que fora despedida ou pedira as contas. E assim que eu me habituava ao macarrão da cozinheira de turno, ela era trocada por outra, mal me dando tempo de decorar seus nomes. Eu sentia falta da anterior, e da anterior à anterior, e daquela, e da segunda, e da primeira, e da anterior à primeira, a que ficara no Brasil. Igual àquela não havia outra, era ela que estava no começo de tudo, não me lembro de mim antes dela. Acho que se chamava Aparecida e preparava o melhor feijão‑preto de São Paulo; era uma preta muito preta e bonita, e além de cozinhar lavava as roupas, pendurava e passava as roupas, e também lavava as louças e varria os quartos e arrumava as camas e regava as plantas e esfregava os chãos. Às vezes, quando eu pressentia que ela ia entrar no meu quarto, mais que depressa me despia e ficava por ali como um sonso. Era uma compulsão irresistível, era um prazer por dentro que eu sentia em saber que por um instante ela me via nu. Isso nunca aconteceu com as arrumadeiras italianas, nunca me mostrei pelado para elas, talvez porque fossem meio gordinhas, com buço. Andando pela cidade, sim, vi muita mulher bonita, só que nenhuma a ponto de me dar aquela nervosia de querer tirar a roupa. Com exceção da professora de italiano do meu pai, mas disso prefiro não falar aqui. O que me pegava na Aparecida não era exatamente a beleza, mas um não sei quê, era quem sabe um jeito de corpo quando ela andava no corredor. Aliás, não sei como demorei tanto a me dar conta de que não havia gente preta na Itália. Nada podia ser tão estranho quanto isso.

Não sei como demorei tanto a me dar conta de que não havia gente preta na Itália. Nada podia ser tão estranho quanto isso

Produto

  • Bambino a Roma
  • Chico Buarque
  • Companhia das Letras
  • 168 páginas

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