Amora — Gama Revista

Trecho de livro

Amora

Vencedor do Jabuti em 2016, livro de Natália Borges Polesso com protagonistas lésbicas ganha tradução em inglês e espaço na revista Granta

22 de Maio de 2020

POR QUE LER?
A coletânea de contos “Amora” (2015) rendeu uma série de alegrias para a escritora gaúcha Natalia Borges Polesso. Quando lançado, além do prêmio Açorianos, da prefeitura de Porto Alegre, venceu o Jabuti, principal premiação literária do país, na categoria contos (inclusive desbancando o veterano e conterrâneo Luís Fernando Veríssimo, que também concorria naquele ano). O livro também entrou para o Plano Nacional do Livro Didático, o que quer dizer que pode ser estudado nas escolas públicas do Brasil, e foi tema de uma questão do Enem sobre gênero e sexualidade em 2018. Ganhou o mundo e foi traduzido para diferentes países de língua espanhola.

Parte do sucesso de “Amora” se deve a isso: é uma daquelas obras que mostram como a representatividade importa. É representativa não só por ser um conjunto de pequenas histórias em que todas as protagonistas são lésbicas, mas também porque são mulheres plurais: crianças, idosas, bissexuais. Mostra mulheres que amam mulheres em toda a sua diversidade real, passando longe de estereótipos redutores e fetichizantes — lugar a que elas ficam reduzidas, muitas vezes, na ficção. E Polesso, autora que depois transitou com mestria do conto ao romance, faz isso em uma escrita leve e informal; a leitura embala numa toada só.

Cinco anos depois de seu lançamento e na semana em que o Dia Internacional da Luta contra a Homofobia é celebrado ao redor do mundo, “Amora” coleciona mais conquistas: traduzido para o inglês por Julia Sanches, o livro ganhou edições nos Estados Unidos e no Reino Unido, e um dos contos foi publicado na Granta, uma das revistas literárias mais tradicionais do mundo. “Umas Pernas Grossas” sai em inglês na publicação britânica e, aqui na Gama, em sua versão original.


“Não podia ser, não podia estar certo, a Isadora tinha namorado e, naquele momento, o namorado da Isadora devia estar na arquibancada, esperando que ela entrasse em campo.

Eu já desconfiava das gêmeas, a Greice e a Kelli, duas loiras parrudas, cujas coxas eram bem maiores que a circunferência do meu corpo inteiro. Não sei. Alguma coisa no jeito de andar, na grossura das pernas, talvez, mas a Isadora não era nada daquilo. A Isadora vinha para o treino de unhas feitas. Ela tinha um caderno da Malhação com o Cláudio Heinrich na capa, e isso era o cúmulo da heteronormatividade. Nós tínhamos catorze, quinze anos e todas nós confiávamos cegamente na revistinha do horóscopo, éramos meninas, fazíamos coisas que diziam ser de meninas. Será que o futebol era um indicador? Acho que não, quase todas tinham namorado, menos a Greice e a Kelli, e eu não tinha porque era puta mesmo, como diziam, ficava com todo mundo.

Na verdade, eu nem gostava muito de futebol. Eu gostava de handebol — e, onde eu morava, se dizia ãndebóu —, mas parei de jogar, porque uma ridícula ficava me chamando de lésbica e dizia que eu me esfregava nela durante o jogo. Pelo amor de deus, eu não era lésbica, não me sentia atraída por ela, ela era feia para o meu gosto não-lésbico. Bonita mesmo era a Ariela, essa sim. Voava para dentro da área com a bola na mão, eu via a cena num ralentando de movimentos quase etéreos, a Ariela com as pernas muito longas, se dobrando como num salto de balé clássico, músculos constritos, antes da expansão, voando, entrando na área, o braço erguendo, as veias dos punhos, a mordida no lábio inferior, e soltava a mão. Bala de canhão. A Ariela era canhota e isso confundia as pessoas. Eu, por conta da ogra que me chamava de lésbica, virei goleira para evitar constrangimentos. Acontece que eu me tornei uma ótima goleira, excelente, na verdade, mas, toda vez que a Ariela voava na minha direção, tudo sumia, eu congelava nos olhos dela. O Marco ficava puto. O Marco treinava a gente no turno contrário da aula, sempre me botava para jogar contra a Ariela, porque eu era a melhor goleira e ela, a melhor atacante. Perdi a conta das boladas na cara, na barriga, perdi a conta dos dedos quebrados, mas sempre valia. No fim do treino, ela vinha me abraçar e dizer que aquilo era uma briga justa. E então ela passava a mão no meu cabelo e me dava um beijo estalado na bochecha, depois me empurrava com um soquinho fajuto. Era uma espécie de ritual para mim, se não tivesse isso no final, o jogo não tinha sido nem bom, nem justo.

Nossa! Como eu queria ter os braços da Ariela, mas sempre tive braços lisos, sem veias, sem marcas, sem pelos. A Ariela tinha uns braços morenos e cheios de sardas, com veias saltadas, as juntas dos dedos grossas, todas grossas de estalar. Eu tenho uns dedos estranhos, hoje tortos de tanto quebrar.

Depois do jogo, a gente ia sentar nas arquibancadas com os guris. Eu ficava com o Diogo, na época. Um alemãozinho magricela com corte de cabelo penico. A Ariela ficava com Felipe, um cara do terceiro. Nós tomávamos sorvete e depois subíamos até o parque para ver os guris jogarem basquete. Minha adolescência foi recheada de esportes e atividades que hoje eu nem consigo pensar em fazer. Não sei se era a escola que incentivava ou se coincidentemente todos os adolescentes daquele colégio gostavam de esportes, o fato é que éramos sempre os melhores das olimpíadas municipais. Éramos todos aficionados por jogos. Lembro que nossa turma resolveu matar aula em peso para assistir Grêmio e Ajax na final do Mundial Interclubes. Os gremistas sofreram o jogo inteiro, enquanto os colorados ficaram secando todas as bolas que entravam na área. No fim, perdemos nos pênaltis. Quatro a três. A ogra que me chamava de lésbica nos dedurou para a professora conselheira, só porque ela não tinha sido convidada. No dia seguinte, todos na direção, dando explicações. Os pais se desculpando com o diretor e com os professores, dizendo que aquilo não aconteceria novamente.

Um dia depois do evento, o Marco perguntou se eu não queria jogar futebol de campo. Eu disse que preferia assistir em casa no horário de aula. Ele quis fazer menção de estar irritado e não concordar com o que tínhamos feito, mas riu da piada. Eu disse que gostaria de jogar futebol de campo sim, aí ele me mandou para uma seletiva de um clube da cidade que estava abrindo um time feminino. Eu fui no horário marcado. Fiz prova física e uma incrível prova escrita sobre conhecimentos gerais e desportivos. No dia seguinte, ele perguntou se eu tinha conseguido a vaga de goleira e eu disse que não. Ele fez uma cara meio triste para ser solidário, acho, e disse que da próxima vez talvez eu conseguisse. Então eu falei que tinha conseguido vaga de atacante. Camisa nove. Ele me olhou intrigado, depois sorriu com satisfação.

A Isadora era camisa dez. A Tui, oito, a Rose era onze, a Greice era cinco, a Kelli era dois, a Simone, quatro e a Jana ficou de goleira. Das outras eu não lembro. Essa era a minha turma do futebol e nós viajávamos e ficávamos amigas de gurias dos outros times da região. Quase todos os fins de semana tinha jogo em algum lugar. A gente era muito ruim, mas isso não importava. Era bacana viajar todo sábado para outra cidade, era ótimo comemorar os gols nos amontoando no chão ou com abraços e pulos, porque lá eu não era uma “lésbica nojenta que se esfrega nas pessoas”, lá eu podia tocar os outros sem o ônus de um apelido idiota.

Um tempo depois, eu encontrei as gurias do time de Parobé numa festinha gay e, quando a Daphne-Teco-Teco me viu, ficou chocada. Isso foi um tempão depois que eu parei de jogar, uns três, quatro anos, acho. Ela me perguntou o que eu estava fazendo lá e se eu realmente sabia que era uma festa gay e eu disse que sabia e que justamente por isso estava lá, então rimos e ela me deu uns tabefes no ombro como quem cobrava alguma explicação, mas eu apenas sorri e a adverti que tivesse paciência, porque eu não estava a fim de contar a história naquele momento. Ela me puxou para cima de um palquinho e disse que queria me apresentar uma pessoa, a namorada dela. Olhou para a pista de dança e depois para os cantos escuros do lugar e finalmente apontou para uma ruiva alta que estava de costas para nós, apoiada no bar. Saltamos de mãos dadas. Ela me levou correndo até lá e me apresentou a Sandra. Eu olhei para a Sandra e ela quase morreu engasgada com a bebida. Ela me cumprimentou falando meu nome entre tosse e surpresa. Era a ogra que me chamava de lésbica na escola. Eu ri e disse que deveria ter ouvido com mais atenção os toques que ela me dava. Mas eu juro que nunca tinha me esfregado nela durante as aulas de handebol, nunca. Eu não tinha nem consciência do que eu sentia pela Ariela. Outro dia achei a Ariela numa rede social, casada, com filhos, advogada. Sem chances, pensei. Pensei em várias coisas naquele dia, pensei nos rumos que a vida toma e procurei todas as gurias nas redes sociais, todas de quem eu lembrava o nome completo. Parecia que eu era a que menos tinha mudado, não sei. Pode ser impressão.

Quando cheguei ao perfil da Isadora, vi que ela tinha muitas fotos com a Kelli e que elas eram casadas uma com a outra. Meus olhos não estavam enganados, nunca estiveram. Aquilo sempre tinha sido paixão, sempre. O jeito que estavam se pegando embaixo do chuveiro no vestiário. Eu voltei para pegar a minha caneleira. Todo o time já estava na concentração, dentro do campo, batendo bola. Menos a Kelli e a Isadora. Eu entrei no vestiário e ouvi o chuveiro ligado. Os cubículos tinham as portas vazadas na parte de baixo e tudo o que eu vi foram quatro pernas perdidas umas nas outras, umas canelas redondas que certamente dariam nas coxas grossas da Kelli e as unhas bem feitas dos pés da Isadora.”

Produto

  • Amora
  • Natalia Borges Polesso
  • Não Editora
  • 256 páginas

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