Agora Agora
Em seu segundo romance, Carlos Eduardo Pereira narra a história de três gerações de uma família marcada pelo racismo e pela perversidade da sociedade brasileira
Um neto traumatizado pelo período que passou em treinamento militar; um avô que funda um bar onde brancos não entram – a não ser aqueles das famílias mais ricas –; um filho profundamente dedicado à família e às escolas de samba do Rio e de Nova Friburgo. “Agora Agora” (Todavia, 2022), novo romance do carioca Carlos Eduardo Pereira, se divide em três partes para narrar a saga de diferentes gerações de uma mesma família em direção a um destino trágico, causado tanto pelos preconceitos, o racismo e a perversidade da sociedade brasileira quanto pelas sombras dessas características que habitam o interior de cada um dos personagens.
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Pereira também é autor de “Enquanto os Dentes” (Todavia, 2017), romance de estreia pelo qual foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. O livro narra a história de um homem cadeirante e negro cuja vida foi marcada pela intolerância e discriminação. Também cadeirante, o autor já escreveu na Gama sobre sua estratégia de militância: chegou a visitar diariamente a mesma farmácia até que a necessidade de ajudá-lo a subir a escada do estabelecimento dia após dia levou o proprietário a instalar uma rampa de acesso.
É por meio de eventos cotidianos à primeira vista sem importância, como no caso de sua saga farmacêutica, que, no novo livro, Pereira adentra a complexa psicologia de seus personagens, apontando como as mazelas sociais podem afetar famílias inteiras, num efeito dominó que vai impactando geração após geração. Numa escrita que lembra a linguagem oral, misturando numa mesma frase registros coloquiais e formais, assim como diálogos e descrições de forma contínua, o autor vai tecendo um tapete narrativo que ganha formas e cores até uma conclusão chocante.
Aqui, em Friburgo, existe esse Grito da Mocidade.
Um bar que é armazém, e que é salão de baile (uma espécie de dancing), e que é casa de espetáculos, e que é sede de torcida organizada do Esperança Futebol Clube, e que é ginásio de boxe, e que é templo onde acontecem às segundas (chova pau ou chova pedra) as sessões da Irmandade Espiritualista Cavaleiros do Fogo, e que é local onde acontecem toda quarta (em regime secreto) as reuniões do Sindicato dos Ferroviários Friburguenses, e que é barracão do Unidos da Saudade (um bloco de embalo que já foi rancho e que já foi cordão).
Um lugar frequentado somente por pessoas negras.
Um lugar onde os pretos da cidade chamada oficialmente de Nova Friburgo (em homenagem a Fribourg, uma vila medieval à beira do rio Sarine, na Suíça, e justo por isso a cidade é conhecida como uma Suíça brasileira, uma Suíça à nossa moda, aquela em que, até outro dia, metade da população era composta de negros trabalhando como escravos para a outra metade), lugar onde esses pretos se reúnem para beber, para festejar, para discutir assuntos de interesse da comunidade, para qualquer coisa.
Um lugar onde os pretos da cidade chamada oficialmente de Nova Friburgo (…) se reúnem para beber, para festejar, para discutir assuntos de interesse da comunidade
O marido da Creusinha resolveu fundar e, ainda hoje, toca o Grito movido por uma teimosia absoluta. Faz uns anos, Jorge deu de criar esse espaço sem levar em consideração as muitas horas diárias que precisa dedicar à função de maquinista-foguista na The Leopoldina Railway Company Limited, sem pensar nos cuidados com a mãe já cansada de guerra (minha bisavó Catirina ainda era viva), sem trazer na cabeça que um pai tem que dar atenção a seu filho que hoje está com cinco anos, meu tio Olavinho, sem ver que a esposa, Creusinha, está que é um balão de tão grávida, que ela, além de cuidar do menino Olavinho, que nem é filho dela de verdade já que veio junto com o marido viúvo do primeiro casamento, ela arruma a casa que é porão e três cômodos e que por dentro mais parece um corredor, e faz uma faxina por dia no Grito, esse lugar que não coloca sequer um centavo como ajuda com as despesas domésticas — pelo contrário –, e lava roupa para fora, e passa a ferro as calças, as camisas, os vestidos e os casacos pesados da elite friburguense. (Friburgo é conhecida por muitos como a cidade mais salubre do Brasil, muitos são os casos de gente da alta, gente rica que costuma vir para cá para cuidar da saúde, membros das melhores famílias do Rio de Janeiro, de outros lugares também, gente que vem para Friburgo para passar cinco meses, seis meses, sobretudo de novembro a maio, quando as epidemias de febre amarela provocam centenas de mortes só na capital, essas pessoas vêm usufruir do poder curativo do clima e das águas daqui. Portanto o que não falta para a Creusinha, minha avó, é trabalho.)
Meu avô nem passa em casa. Veste suas roupas de ontem, o chapéu, coloca na bolsa a marmita enrolada num pano, que a Creusinha trouxe, e está prestes a correr para ver se ainda pega o bonde que a essa hora deve estar passando pela Alberto Braune, cheio até a tampa só com os funcionários da fábrica Ypu. Mas vai perder o bonde, se atrasa porque hoje ele dormiu no Grito e não em casa com a esposa e com o filho. Ele está prestes a correr, mas antes se vira para a Creusinha e gagueja Creusinha, onde é que está meu filho?, cadê, cadê meu filho, mulher?, tu teve coragem, tu teve coragem de largar a criança sozinha?
E dá três tabefes na mulher. Um com a mão direita e dois com a esquerda, seu braço bom, e manda a minha avó Creusinha ir depressa para casa, que ela arrume mais ou menos aquela bagunça no Grito, que ela jogue fora todo lixo produzido nessa noite anterior e depois volte ligeiro para casa para cuidar do menino Olavinho.
Perdido o bonde, ele vai ter que correr. Correr de verdade para cobrir de ponta a ponta a Alberto Braune: da porta do Grito, na rua do meretrício, até o fim da praça, onde fica a estação. Correr de verdade, e a sorte é que ainda está cedo, ainda não tem muita gente na rua, porque seria realmente estranho cruzar com um crioulão como ele correndo. As pessoas poderiam se assustar.
…a sorte é que ainda está cedo, ainda não tem muita gente na rua, porque seria realmente estranho cruzar com um crioulão como ele correndo. As pessoas poderiam se assustar
Jorge só admite a entrada de negros, e negras, no Grito, mas existem exceções. Se o branco for da alta, filho das melhores famílias de Nova Friburgo, aí está tudo certo, aí pode sim frequentar o local tranquilamente. Às vezes aparece um. Falo dos Braune, dos Sertã, dos Salusse, dos Heringer, dos Schwenck, dos Monnerat, aí não tem problema. Esses filhos das melhores famílias, e o tenente Durval.
Dizem por aqui, e Jorge, meu avô, estufa o peito de estourar de orgulho sempre que ele ouve essa história, dizem por aqui que certa vez o tenente Durval, um delegado nortista que veio para cá nomeado pelo presidente Vargas para manter a ordem na cidade, sujeito perverso, outro que é metido a valente, famoso por andar com três revólveres na cinta, sempre acompanhado de dois guardas igualmente armados, um camarada brigão, que o povo respeita, que o povo sai da frente toda vez que ele resolve passar, pois bem, dizem por aqui que certa vez, foi num domingo, que vinha o tenente Durval pela praça Marcílio quando deu pela frente com Jorge.
É que teve clássico: o Esperança ganhou do Friburgo de um a zero, gol de Benedito, ponta-esquerda driblador, um pretinho que usa o drible muito bem, justamente para atacar pela fresta deixada entre dois marcadores, já no finalzinho da partida. E Jorge estava na Marcílio Dias celebrando a vitória, e parecia bêbado, ainda que ele jure de pés juntos que nunca na vida colocou uma gota de álcool na boca.
E o tenente Durval resolveu interferir, disse que marmota é essa, seu cabra? E Jorge não deu atenção, seguiu dando porradas no seu bumbo. Não chegaram nem a discutir (Jorge gosta de dizer que não é homem de ficar discutindo com ninguém, mas há quem diga na boca miúda que ele até tentou argumentar, há quem diga que foi a gagueira que impediu), não chegaram nem a discutir porque o tenente Durval e seus capangas foram logo baixando o cacete, e Jorge precisou se defender. Bateu nos três (não se sabe exatamente de que forma conseguiu, pois as pessoas em volta entenderam por bem se esconder, com medo que sobrasse tiro, portanto não havia testemunhas), bateu tanto que os mantenedores da ordem acabaram internados lá no Sanatório.
Dias depois, o tenente Durval procurou Jorge, no Grito. Dizendo cabra-macho que nem tu eu nunca vi. E apertando a mão de Jorge com firmeza. E, em seguida, tu não larga desse bumbo quase nunca, não é certo?, então passe ele pra cá que eu vou lhe dar um presente. E escreveu na cinta de couro do bumbo o portador deste instrumento é o valoroso Jorge Ferreira, que é meu amigo, e como tal não deve ser importunado por ninguém, em nenhuma circunstância, assinado Tenente Durval.
O episódio já faz alguns anos, e a cinta de couro do bumbo está toda surrada, mas dá para ver que tem alguma coisa escrita ali, e pode muito bem ser mais ou menos isso mesmo.
…o tenente Durval e seus capangas foram logo baixando o cacete, e Jorge precisou se defender. Bateu nos três, bateu tanto que os mantenedores da ordem acabaram internados lá no Sanatório
- Agora Agora
- Carlos Eduardo Pereira
- Todavia
- 216 páginas
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