A Consulta
Em sessão de psicanálise ficcional, autora Katharina Volckmer se aprofunda nos tabus, medos e mazelas da sociedade contemporânea
“Os alemães dizem que lidaram com seu passado, mas não acho que isso seja possível”, já declarou a escritora alemã Katharina Volckmer em entrevista ao The Guardian. A autora fala que até hoje, quase 80 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, seus conterrâneos “simplesmente congelam” ao ouvir qualquer menção ao Holocausto. Até por isso, seu livro de estreia, “A Consulta” (Fósforo, 2022), não apenas contesta os impactos dessa herança como os submete a um tratamento de choque capaz de “descongelar” qualquer reação.
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A premissa simples parece um espelho do clássico “O Complexo de Portnoy” (Companhia das Letras, 2004), de Philip Roth, um dos maiores expoentes da literatura judaica. Assim como lá, aqui a protagonista narra sua história jogada num divã, falando sem parar com um médico invisível e judeu que atende pelo nome de dr. Seligman. Desde sessões de masturbação guiadas pelo bigode de Hitler até a impossibilidade de gozar sem fazer ao mesmo tempo a saudação nazista, a protagonista da obra vomita tabus que tocam em feridas que vão desde o desejo feminino e o gênero sexual até a identidade de uma nação marcada por um crime que ainda dita como as pessoas agem ou devem agir.
Considerada uma das principais vozes literárias a surgir nos últimos anos, Volckmer escreve com naturalidade sobre temas espinhosos, discutindo questões importante por meio das neuroses, desejos e medos de sua protagonista, uma mulher que enriqueceu repentinamente e ainda luta para se libertar de suas raízes familiares. Uma jornada por vezes engraçada e por vezes assustadora, mas que nunca deixa de ser interessante nem de se aprofundar em algumas das maiores vergonhas e hipocrisias da sociedade atual.
Mas não é preciso ter medo de mim, dr. Seligman, mesmo. A sua assistente me contou que o senhor é muito meticuloso e que isto poderia demorar um pouco, principalmente as fotos, então não quero que se preocupe, porque continuo achando que os motivos da minha demissão do trabalho foram mal interpretados, e não é justo dizer que tenho problemas em conter a raiva. Estava com raiva naquele dia, claro — foi antes de começar a tomar os meus hormônios –, mas ser suspensa assim, quando não fazem ideia de como as coisas são pra gente como eu? E não acho que uma pessoa balançando um grampeador no ar e ameaçando grampear a orelha de um colega na mesa possa de fato ser considerado um gesto violento. Não com aqueles grampeadores, pelo menos. Duvido que já tenham tentado grampear carne humana, e a uma mesa sólida, com uma dessas coisinhas duras de plástico. Provavelmente havia mais risco de eu perder a visão com um grampo perdido, mas claro que isso não importava para eles. Nem precisa se perguntar se alguma vez nos ofereceram óculos de proteção. Sabe-se lá quantas pessoas serão vítimas de todos aqueles itens baratos de papelaria. Mas já não sinto pena. Que sejam envenenados de tanto morder aquelas canetas horríveis que transformam qualquer caligrafia numa coisa lastimável. Porque o pior não foi perder o emprego — nesta cidade se passa fome de qualquer jeito –, mas terem me feito procurar um terapeuta chamado Jason, porque senão eles dariam queixa. Pode imaginar falar sério com um terapeuta chamado Jason, dr. Seligman? Um cara que também poderia se chamar Dave ou Pete, com o tipo de rosto que se adapta a qualquer coisa, como um desses professores de ioga que sorriem em meio a qualquer atrocidade porque sabem que o universo apoia a causa deles, e que se a Sol pudesse escapar de si mesma e girar em torno deles, ela giraria. É por isso que pessoas como o Jason acham que podem perdoar todos esses erros humanos mesquinhos, e é por isso também que decidi mentir para ele.
Acho que não existe nada mais desagradável que uma perversão não compartilhada
Eu não fazia ideia da linha teórica do Jason, mas achei que ele se irritaria se eu falasse da minha fixação sexual pelo nosso querido Führer e dissesse que a incapacidade de conseguir satisfazer os meus desejos havia me despertado raiva e me feito desejar grampear o lóbulo do meu colega na mesa. Não podia contar a verdadeira natureza dos meus sonhos e todas as coisas que estavam erradas com o meu corpo, e depois de algum tempo comecei a gostar de verdade da minha história. Já quis ser escritora, dr. Seligman, e inventar uma narrativa dessas foi uma experiência linda. No final, o Jason mal podia esperar para terminar nossas consultas, dava pra perceber. Acho que não existe nada mais desagradável que uma perversão não compartilhada; além disso, estar preso numa sala com uma alemã que fala sozinha em um estado semiorgiástico ao imaginar ser açoitada pelo chicote do Führer também levanta uma questão moral. Embora o Jason não parecesse disposto a se envolver emocionalmente, eu percebia que ele estava sofrendo. Mas não eram só obscenidades; houve momentos de intimidade verdadeira, daquele cavalheirismo paterno que secretamente ansiamos, de dúvidas e promessas quebradas e do fim inevitável de ser trocada por Eva Braun, a secretária careta dele, que tinha o nome da cor mais feia. Descrevi em detalhes como acariciei os cães pela última vez antes de devolver todos eles, aquelas minhas doces provas de afeto, e como consegui contrabandear uma mecha de seu célebre cabelo numas meias de náilon sujas, e um bilhete, escrito à mão, me pedindo para não usar nada além de um quipá. Acho que Jason fez um esgar quando contei que andava sonhando acordada com o meu pequeno A., era assim que eu chamava Hitler quando estava sozinha, me fazendo dizer “Meu nome é Sara” antes de me castigar com seu chicote poderoso. Nos meus sonhos eu tinha cabelos castanho-escuros e também aqueles lindos olhos castanhos, e tudo parecia maravilhosamente controverso. Jason prometeu assinar qualquer coisa que atestasse a minha natureza calma e plácida, assim nunca mais precisaria me escutar contando como adquiri o hábito de gozar em cima de pequenos retratos do Führer ao imaginar seu bigode fazendo cócegas nas minhas partes. E como achava difícil chegar ao orgasmo sem fazer a saudação. Até me ofereci para desenhar alguns dos sonhos e sugeri que a dramatização seria uma boa maneira de superar as minhas tensões, mas o máximo que ele conseguia balbuciar é que eu jamais deveria me esquecer de que não sou meus pensamentos. No fim das contas, fiquei bastante decepcionada com o Jason e a falta de imaginação dele, dr. Seligman, mas ainda assim fiquei agradecida por uma coisa. Antes dessas sessões eu pensava que Hitler fosse apenas um caso grave de complexo de Napoleão que tinha dado muito errado. Um pequeno Lua desesperado tentando cortejar a Sol enquanto ela não estava nem aí. O senhor pode estar se perguntando por que me refiro ao Sol como ela, mas lembre-se de que na minha língua materna Sol é mulher e Lua é homem, como uma espécie de valquíria que tenta proteger seus encantos de um homenzinho desagradável. Talvez por isso sejamos tão pervertidos e por isso o chamado complexo de leão tenha tido consequências tão catastróficas para nós. Não quero achar justificativas para isso mais uma vez, mas talvez Hitler realmente sentisse que não seria capaz de satisfazer a Sol. Só um baixinho poderia pensar em sua potência nesses termos; só ele se sentiria ameaçado por alguém que nunca cogitaria a ideia de ameaçá-lo, ele que não conseguia nem produzir sua própria luz. Tenho certeza de que a Sol não está nem aí para o Lua e suas investidas desesperadas. Por que prestaria atenção a um homem que poderia muito bem entrar caminhando na sua vagina sem qualquer impacto sentimental?
…adquiri o hábito de gozar em cima de pequenos retratos do Führer ao imaginar seu bigode fazendo cócegas nas minhas partes
Ainda hoje, dr. Seligman, para um alemão, um judeu vivo é um verdadeiro espetáculo, não fomos criados para isso. Só estávamos acostumados a ver judeus mortos ou miseráveis, que nos olhavam de um sem-fim de fotos acinzentadas, ou de algum lugar muito distante, no exílio, sem nunca sorrir, e nós em dívida eterna com eles. Nossa única forma de compensação foi transformar os judeus em criaturas mágicas que exalam pozinho mágico por todos os orifícios, com intelectos superiores, nomes curiosos e biografias infinitamente mais interessantes. Na nossa imaginação, um judeu nunca seria motorista de táxi, e no meu livro de teologia havia até uma página dedicada a judeus famosos. Nas aulas de música a gente cantava “Hava Nagila” em hebraico, dr. Seligman — trinta crianças alemãs e nenhum judeu à vista, e cantávamos em hebraico para ter certeza de que continuávamos desnazificados e cheios de respeito. Mas nunca estivemos de luto; no máximo, interpretamos uma nova versão de nós mesmos, histericamente não racista sob qualquer perspectiva, e negando qualquer diferença sempre que possível. De repente só havia alemães. Nenhum judeu, nenhum trabalhador temporário estrangeiro, nenhum Outro. Mesmo assim nunca concedemos a eles o status de seres humanos de novo nem permitimos que interferissem em nossa versão da história até aquela pilha horrível de pedras que puseram em Berlim para lembrar as vítimas do Holocausto. O senhor viu aquilo, dr. Seligman? Sério, quem quer ser lembrado assim? Quem quer ser lembrado como o alvo da violência? Estamos muito acostumados a controlar nossas vítimas, e é por isso que mesmo depois desses anos todos quase não consigo deixar de me espantar por vocês estarem vivos fora dos livros de história e dos monumentos, por terem se libertado da versão que fizemos de vocês e por agora estarmos nesta sala juntos, fazendo o que estamos fazendo, por eu quase conseguir tocar o seu lindo cabelo daqui de cima. É como um milagre. Se bem que eu deveria lhe dizer que seu cabelo está rareando um pouco no cocuruto; mas é de leve, nada que possa demover um admirador. Mas, mesmo assim, achei que deveria saber.
Ainda hoje, dr. Seligman, para um alemão, um judeu vivo é um verdadeiro espetáculo, não fomos criados para isso
O senhor acha que foi bobagem minha não ter aproveitado melhor o Jason, dr. Seligman? Foi a única vez que pagaram para eu me tratar com um terapeuta, e eu fiquei contando uma história maluca. Deveria é ter ficado feliz por ele não ter me mandado para algum manicômio por causa dos apelidos que inventei para o pau do Führer. Mas isso foi antes que meu corpo se tornasse o problema que é agora, foi quando eu ainda achava que podia assistir pornô gay e encontrar uma saída rindo. Isso foi antes de conhecer K., dr. Seligman. Até então eu sabia do meu dilema, mas existem diferentes maneiras de saber, diferentes reações a esse conhecimento. E, ao contrário do que dizem, é preciso, sim, um corpo para amar. Toda essa bobagem sobre almas simplesmente não é verdade, que se pode amar uma alma independentemente do formato em que venha. Nosso cérebro é feito de tal maneira que só podemos amar um gato como gato, e não como pássaro ou elefante. Se queremos amar um gato, queremos ver um gato, tocar seu pelo, ouvir seu ronronar, e que ele arranhe a gente se for tocado do jeito errado. Não queremos ouvir um latido, e, se começarem a nascer penas no gato, ele será morto, estudado e, por fim, exibido como uma aberração. Não sei por que nosso cérebro é assim, mas K. me ensinou que, se quisermos que nasçam penas em nós quando as pessoas não esperam que a gente voe, elas vão nos abater a tiros lá no céu, e seus cães vão nos sacudir para ter certeza de que nosso pescoço está quebrado antes de nos enfiar num saco e nos descartar. Nosso cérebro ainda pode tolerar um gato sem rabo, ou com três patas, mas qualquer acréscimo, qualquer apêndice com o qual o gato não deveria ter nascido nunca vai ser aceito. E um gato que late é um gato doente que passou tempo demais na companhia de cães; não é o tipo de gato que se quer em casa para brincar com os filhos, porque, vai saber, a doença poderia se espalhar e no dia seguinte o seu cão cockapoo acordaria com chifre. Até conhecer K., dr. Seligman, não tinha percebido que essas são fronteiras absolutas, e que nenhum gato que late jamais conquistou o céu.
E, ao contrário do que dizem, é preciso, sim, um corpo para amar. Toda essa bobagem sobre almas simplesmente não é verdade
- A Consulta
- Katharina Volckmer
- Fósforo
- 104 páginas
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