Vanessa Rozan
Ninguém vence na comparação
Enquanto estamos nos comparando, pensando que o verão vai chegar e não deu tempo de chegar ao corpo ideal, vai passando a boiada da criminosa PEC 164, que proíbe o aborto mesmo nos casos previsto em lei
Quando eu acho que não pode piorar a situação do corpo da mulher, que já foi vítima da publicidade, da moda e do cinema, eu me deparo com uma trend nova no TikTok.
Em geral, quando eu escuto falar sobre um desses movimentos que viralizam, eu procuro ficar de fora o máximo de tempo possível para primeiro entender o que a tal tendência mobiliza junto com os milhares de vídeos. A gente falou de vários deles aqui, como as Trad Wifes e a febre das Sephora Tweens, além de tudo o que orbita ao redor desses dois virais diferentes. Mas dessa vez, quando me dei conta, testei a trend e fiquei ali, olhando todos os vídeos que me apareceram sobre o assunto.
A trend consiste em pesquisar seu peso e altura na barra de busca dentro do aplicativo. O resultado: os algoritmos te entregam vídeos de mulheres com o mesmo peso e a altura. E eu já ia escrever no restante dessa frase anterior: “com o objetivo de que você se compare com alguém que tem as mesmas medidas que você”, mas não, ninguém disse que era pra se comparar. Aconteceu sem que eu pudesse pensar sobre o assunto, quando eu tava ali vendo todos os outros corpos, bem descuidada.
Comecei a observar todos eles, muitos vídeos eram de pessoas bem mais jovens do que eu, que é até um corte geracional da plataforma, que atinge em cheio os novinhos. Quando eu voltei ao vídeo inicial, que me ensinava sobre essa trend, eu parei para ler os comentários e muitos eram sobre como essa comparação tinha feito muita gente se sentir pior, ou seja, todo mundo (ou muita gente) se comparou sem mesmo pensar sobre isso. Se deu conta quando já era tarde.
A gente poderia pensar que isso serviria para entender como os corpos são plurais e é possível que eles se apresentem em diversas formas, opa, ponto pra diversidade. Mas toda a brincadeira é, segundo o que está escrito nos vídeos, sobre saber como as pessoas te veem ou “para se sentir melhor”. Não bateu aqui assim. Passei uma boa parte da vida sendo mulher durante um baita backlash.
Ao voltar para casa esses dias e conversar com a minha filha no trajeto, falamos sobre como o funk das dancinhas do TikTok é a música que as amigas mais escutam. Antes mesmo que eu pudesse falar sobre como algumas letras não são indicadas para os 12 anos dela, ela me diz: “Bom, você cresceu com a Xuxa na televisão, né? Eu vi uns cortes de umas frases que ela dizia no programa matinal e, mãe, socorro”. De fato, minha geração leu Capricho com a Samara Felippo na capa esticando a blusa para cima, mostrando a barriga ao lado de uma chamada que convidava o leitor a entender como a atriz tinha conseguido uma barriga sequinha. E se tratava de uma revista para ser lida na ascolescência, aquele período delícia em que já estamos lidando com um tanto de pressões externas e internas. Eu cresci com milhares de exemplos de revistas femininas que sugeriam dietas e guias de como agradar um homem, todos vendidos para que a gente acreditasse que, com uma pseudo revolução sexual, seríamos donas dos nossos corpos. Nada mais patriarcal que isso.
Os anos 1980 e 1990 foram tempos de um baita contra-ataque nas mulheres, logo após os avanços das pautas femininas e das minorias das duas décadas anteriores. Eu sempre cito o livro da já clássica Susan Faludi que desenha bem como isso foi orquestrado. A má notícia é que estamos passando pela mesma condição agora. Após tudo o que questionamos, tanto na beleza quanto na moda e em pautas sociais importantíssimas, como a legalização do aborto e os direitos das mulheres nos ultimos anos, tudo volta a se expremer no tamanho 36 para fazer caber um corpo que precisa ser observado e controlado minuciosamente.
Penso em quantas meninas, as que seguem comparando suas medidas, esquecem que são as maiores vitimas de estupro neste país e no mundo
O ataque vem com as adolescentes que trocaram as lojas de brinquedo pelo universo dos cosméticos, com um medo mais que precoce do envelhecimento, um grande terror a ser evitado; com as trends como as que comparam corpos com as mesmas medida; com os filtros aplicados a nossa imagem para nos sentirmos melhor com o que vemos e depois lidarmos com a angústia da realidade; com a ideia de que seria tudo melhor se a vida fosse um conto de fadas (falhas) das trad wifes, que estão agorinha assando um bolo com o cacau que plantaram no jardim ontem. São as irrealidades do tempo das redes sociais.
E, enquanto estamos nos comparando umas com as outras, pensando que o verão vai chegar e não deu tempo de chegar ao corpo ideal, vai passando a boiada que deveria prender nossa atenção de fato: a criminosa PEC 164, que proíbe o aborto mesmo nos casos previsto em lei.
Penso em quantas meninas, as que seguem comparando suas medidas, esquecem que são as maiores vitimas de estupro neste país e no mundo. O que será da vida delas ao recorrer a uma lei que não as protege mas, ao contrário, as pune? Não há filtro que nos salve dessa condição. O pior é que hoje existe, dentro das redes, uma grande bolha de informação que consolida mentiras e as transforma em verdades absolutas.
Esses dias, vi um outro vídeo de uma influenciadora que ia fazendo as tarefas da casa toda de salto e emperequetada (nada de errado em querer andar assim, mas a gente sabe que é longe da realidade fazer uma faxina de salto alto, parece anúncio da década de 50), e ela ia dizendo que o feminismo não servia para nada. Que as feministas eram feias e só queriam basicamente bagunçar nas ruas e mostrar o corpo, e que nada que elas fizeram ajudaram as “manas como ela”, que precisavam buscar o filho na escola e cuidar da casa e do marido. Pensei que se a gente, eu e ela, tivéssemos na mesma página de entendimento histórico, poderíamos comparar como eram nossos direitos em 1924 e como são hoje, cem anos depois. Essa é a única comparação que poderia nos mover.
Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.
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