Observatório da Branquitude
Por uma filantropia com a cara de Valdecir Nascimento
Valdecir é floresta, símbolo de vida, renovação e interconexão, é todo um ecossistema de ideias inovadoras
Agosto, o eterno agosto das redes sociais, com seus memes divertidíssimos sobre a sua duração de 365 dias. Para mim, no entanto, é um mês que marca o ciclo do sol e a celebração de tantas pessoas queridas, em especial, meu companheiro de vida.
Agosto ainda abriga a celebração do Dia dos Pais, e neste ano trouxe à praça pública reflexões importantes acerca das delícias e das mazelas dessa efeméride, como podemos observar na edição da Semana.
Mais recentemente, agosto se tornou um mês que transcende as minhas celebrações pessoais. É também um mês para celebrarmos a filantropia negra, um movimento que, nascido nos Estados Unidos, já ecoa globalmente.
A filantropia negra tem alicerce no ideal ubuntu, ‘sou, porque nós somos’, e também na filosofia sankofa, que ensina olhar o passado para construir o futuro
Em uma livre análise, e sem compromisso com rigor histórico, enxergo o Mês da Filantropia Negra como uma verdadeira celebração de nossa ancestralidade e de nossa força transformadora. Conforme grifaram mulheres negras inspiradoras, no encontro orquestrado pelo GIFE, a filantropia negra tem alicerce no ideal ubuntu, “sou, porque nós somos”. Também tem raízes na filosofia sankofa, que nos ensina a olhar para o passado para construir um futuro melhor. Ainda, a filantropia negra pode ser lida como um canal para o afrofuturismo, materializando esse futuro onde a ancestralidade, a tecnologia e a justiça social se encontram.
Tangibilizamos esses conceitos, ao olharmos para a rica história da Sociedade Protetora dos Desvalidos e da Irmandade da Boa Morte como exemplos emblemáticos dessa força transformadora. A festa da Boa Morte, também celebrada em agosto, é um legado dessa trajetória, com seus simbolismos e tradições que merecem uma coluna inteira para ser explorada em detalhes.
Impulsionada pelos encontros que marcaram este mês, e à luz da filantropia negra, dedico este espaço a um nome em particular: Valdecir Nascimento.
A sorte de compartilhar uma mesa com Valdecir em um evento foi o ponto de partida para a inspiração desta coluna. E a pesquisa para homenageá-la começou com uma curiosidade: o significado de seu nome. Explico: nomes que terminam em “i” ou “ir”, despertam meu interesse. À época da minha gravidez, embarcamos em uma verdadeira jornada pela busca de um nome para a nossa filha. Neste percurso, deparei-me com a ilusão cisnormativa que permeia a escolha dos nomes, a ideia equivocada de que o nome precisa se encaixar em um gênero. Essa busca por nomes mais fluidos me levou a conversas especiais. Lembro-me de uma que tive com Camila, quando ela me falou sobre o nome de sua avó, Juraci. Nascida em uma época marcada por fortes convenções de gênero.
Voltando a Valdecir, uma busca rápida no google me revelou, inesperadamente, que o nome pode ser de origem germânica — o que me gerou estranhamento, porém gosto muito do possível significado, “recanto da floresta” ou “aquele que habita na floresta”. Valdecir Nascimento é uma floresta, à medida que personifica um ecossistema complexo e vibrante. Tal como uma floresta que só existe no coletivo, Valdecir, por onde passa, fomenta a biodiversidade de ideias em toda a cadeia da filantropia. Como expressou publicamente neste evento de agosto, ao falar sobre Odara, organização a qual é idealizadora: “Não queremos ganhar recursos sozinhas, o Nordeste sabe o que fazer, e o Nordeste precisa de recurso para fazer, não adianta mandar o dinheiro só para Odara”.
Ao pé da letra, a filantropia é ‘amor pela humanidade’
Neste mesmo encontro de celebração do Mês da Filantropia Negra, foi revisitada a etimologia de “filantropia”. Originária do grego, é a composição de duas palavras. A primeira é filos, que quer dizer afeição, amor. E a segunda é antropo, que quer dizer homem, humanidade. Portanto, ao pé da letra, a filantropia é “amor pela humanidade”.
Valdecir, em suas ações cotidianas, encarna esse conceito não apenas no sentido do amor romântico ocidental, mas sobretudo na perspectiva mais abrangente do amor trabalhado por bell hooks, que vai dizer que é a combinação de seis elementos: cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e conhecimento.
Assim como bell hooks, Valdecir é uma pessoa que nos convida à reflexão em cada simples colocação que exprime. É uma sexagenária com a vivacidade da primeira infância. É destemida em suas contínuas afirmações que temos que reimaginar um outro mundo, com protagonismo de mulheres negras liderando a revolução. É uma pessoa que me faz pensar sobre a importância da nossa identidade calcada nas nossas raízes. Seus olhos, que já viram tanto, seguem vibrando com a verve dos jovens que estão entrando na militância.
E é por isso que escolhi destacar Valdecir nesta coluna de agosto. Pois Valdecir é floresta, símbolo de vida, renovação e interconexão, é todo um ecossistema de ideias inovadoras. É uma felicidade sermos contemporâneas de uma mulher tão à frente de seu tempo, que nos inspira a sermos catalisadoras de mudança, usando qual seja a ferramenta que está ao nosso alcance.
Manuela Thamani é bacharel em administração de empresas (USP) e mestra em comunicação (USP). Trabalhou em multinacionais, veículos de mídia e fundações. É codiretora executiva do Observatório da Branquitude.
Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.
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