Luara Calvi Anic
Gal, Ernaux e Hilda Hilst
Cada movimento de Gal foi um avanço histórico feminista. As escritoras Annie Ernaux e Hilda Hilst também deixam um legado por meio de suas produções e escolhas
– Meu nome é Gal. E o seu?
– É Bethânia
Não sei se Gal e Maria Bethânia eram amigas que ainda se frequentavam, já li que nem tanto. Mas a fala de Bethânia sobre a morte de Gal, foi esta:
“Uma amiga que me levou longe”
E eu pergunto: as amigas que você escolheu te levam longe? Qual amiga você levou longe?
Gal era amiga de todas nós de muitas maneiras. Por meio de sua força inspiradora, de sua voz poderosa. Seu “Meu nome é Gal” nos convida a dizer nosso nome bem na cara dos machistas.
A sensualidade e o batom vermelho durante a ditadura, o peito nu no palco, cada movimento foi um serviço de utilidade pública, um avanço histórico feminista. A existência de Gal é inteira política. Um desinfetante contra a caretice que insiste em sair do ralo.
Meu nome é Gal. E o seu?
A Folha de S.Paulo deu esta semana uma foto em que Gal aparece com os seios à mostra em um show de 1994, cantando Cazuza. Na capa do jornal o #freethenipple existe. Na internet nunca aconteceu realmente e com frequência vejo gente bloqueada pelo motivo de mamilos à mostra.
Ainda sobre amizade, uma vez precisei escrever uma matéria com dicas para ser mais feliz. Lembro de duas: tenha um cachorro e mantenha amizades antigas. É simples associar felicidade a cachorro. Já com amigos antigos a relação é mais complexa. Eles podem te lembrar de vivências que você esqueceu, dar pistas de quem você era no passado e, dessa maneira, te ajudar a resolver chaves de identidade. No geral, podemos nos sentir mais confortáveis e felizes quando estamos com amigos que sabem das nossas origens, que assistiram nossas transformações.
Lembro de Hilda Hist, que mantinha em casa uma parede inteirinha de retratos de suas amigonas e amigões, como um santuário. Estão lá Lygia Fagundes Telles, Olga Bilenki, Caio Fernando Abreu e outros. Demos aqui na Gama um texto de Ana Lima Cecílio em que ela descreve a “Casa do Sol”, em Campinas, para onde a escritora se mudou fugindo do fervo paulistano e onde recebia todas as amigas e amigos desse mesmo fervo paulistano. Hilst sabia, como bem descreve Cecílio em seu texto: “Amigo pode não resolver tudo. Mas ajuda.”
Semana que vem chega ao Brasil a tradução de “O Jovem” (Fósforo), livro da francesa Annie Ernaux, em que ela relata o seu romance com um homem 30 anos mais jovem. Chega também a própria Ernaux, como convidada da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty.
Li “O Jovem” em menos de uma hora, é um livro curto e preciso. Foi ótimo. Nele, a vencedora do Nobel de Literatura deste ano traz um episódio em que vai à praia com seu amante e é atravessada por olhares que repreendem sua liberdade, seu desejo.
“Na praia, deitada ao lado dele, sabia que as pessoas ao redor ficavam nos espiando, a mim sobretudo, e que elas examinavam meu corpo, medindo seu estado avançado, quantos anos ela deve ter? Se estivéssemos deitados separados na areia, nenhum de nós receberia uma atenção especial. Ao se deparar com o casal que nitidamente formávamos, os olhares passavam a ser descarados, quase estupefatos, como se diante de uma união antinatural.”
Ernaux escreve sob o ponto de vista de alguém consciente de sua condição de mulher. Seus livros trazem a necessidade de sempre lembrar desse lugar. Mudam governos, o tempo passa e a história se repete. Daí a certeza que mulheres de diferentes realidades terão sempre que reafirmar cada passo conquistado, estarem alertas.
“Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo“, ela escreve no imperdível “O Acontecimento” (2000), sobre o aborto pelo qual passou nos anos 1960.
Seus livros são resultado de uma intensa investigação pessoal, do mundo que ela habita. Ao pesquisar documentos históricos e fotos de família, Ernaux diz fazer uma etnografia de si mesma. Não à toa é enquadrada na autoficção, gênero da moda que domina as mesas desta edição da FIip.
Há essas pessoas que vivem para tentar descobrir, que vasculham a alma para saber, que levam a vida apertando o olho pra entender o que se passa. É gente que carrega este modus operandi: “Espera aí, o que aconteceu aqui comigo?”. Ernaux e seus leitores certamente carregam esse interesse.
- O Jovem
- Annie Ernaux
- Fósforo Editora
- 56 páginas
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Luara Calvi Anic é jornalista, editora-chefe da Gama revista, onde coapresenta o Podcast da Semana. Foi livreira, editora de cultura e comportamento da ELLE e de outros títulos da Editora Abril, repórter da Trip/Tpm e colaborou com Folha de S.Paulo e Marie Claire. Atualmente, cursa mestrado em ciências da comunicação pela ECA-USP
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