Perder um amigo é ouvir um silêncio — Gama Revista
COLUNA

Luara Calvi Anic

Perder um amigo é ouvir um silêncio

Escrever sobre o fim é também tratar do que se viveu. E quando contamos o que vivemos há a oportunidade da memória ficar ainda mais bonita

23 de Setembro de 2022

Meu amigo

Você morreu hoje. E o que descobri é que perder um amigo é ouvir um silêncio. Como um barulho alto, muito alto, mas é silêncio.

Te escrevo neste formato porque durante a quarentena a gente inventou de trocar cartas. Escrevo também porque não sei se você teve consciência do que aconteceu ou como estava sua cabeça desde que soube que não tinha mais jeito, que o fim estava próximo.

Quando você me contou o diagnóstico eu logo descobri que era grave. Você seguiu os médicos, como deveria ser, e não parecia cogitar a morte tão próxima. Eu cogitei. Pesquisei muito e concluí que seu fim precoce era uma possibilidade que eu deveria considerar.

Eu, que sempre perguntei tudo a ponto de te deixar falso tímido, não consegui perguntar muito. Não deu tempo, respeitei seu jeito discreto desta vez. Preferi te falar do meu amor. E o amor de amigo é uma coisa assim especial. Depende de ir colecionando histórias, aproximar, afastar e ver que a relação continua ali, deliciosamente agradável.

Deve ser por isso que no dia da despedida eu senti que estava perdendo uma grande coisa. Depois de 20 anos de presença, a falta e a impossibilidade de compartilhar vivências e seu desaparecimento do planeta são fatos irremediáveis. Daí o silêncio.

Mas eu me permito um afago baseado em clichês e digo que você continua vivo na minha memória. Deve ser por isso que, embora as pessoas fiquem receosas de comentar sobre alguém que morreu, eu gosto quando perguntam de você.

Embora as pessoas fiquem receosas de comentar sobre alguém que morreu, eu gosto quando perguntam de você

Tava lembrando de quando a gente se conheceu. Eu trabalhava numa livraria e você era um frequentador assíduo. Vivia lá apoiado no balcão e, enquanto confeiteiro, melhorava nossa vida assalariada trazendo docinhos diários.

Existe um microcosmo que se cria em certos comércios, umas pessoas que aparecem sempre, umas repetições. A verdade é que antes das redes sociais a gente tinha mais tempo e disponibilidade de chegar nos lugares e ficar de papo. Agora, tem o Tik Tok (que você certamente nunca entrou. Que bom) para roubar nossas horas de vida. E a especulação imobiliária para acabar com qualquer lugar com mais de uma década – claro que a livraria que a gente se conheceu não existe mais.

Se você fosse hoje lá e pedisse uma indicação de livro sobre a morte, eu traria “Altos Voos e Quedas Livres”, do Julian Barnes, que é sobre a perda da companheira dele. “Você junta duas coisas que nunca foram juntadas antes”, o autor começa assim. “E o mundo se transforma.” Ao longo do livro ele fala de balonismo, fotografia, amor e morte. A beleza de voar traz o risco do desastre; a fotografia, a possibilidade de olharmos por outros ângulos; “toda história de amor é potencialmente uma história de sofrimento”.

Me sinto um pouco mal de aproximar a perda de um amigo à perda de um amor, de uma companheira de vida, que parece pior. Mas aí eu penso que quando falamos de morte, falamos de vida, e das belezas da vida. Então escrever sobre o fim é também tratar do que se viveu. E quando contamos o que vivemos há a oportunidade da memória ficar ainda mais bonita.

Barnes começa falando de balonismo, a loucura dos aeronautas de sair por aí num negócio daqueles. “Lá em cima, no meio das nuvens, não há silêncio, mas a sombra do silêncio”/”Quando me senti escapando da terra minha reação não foi de prazer e sim de felicidade. Eu podia me ouvir vivendo”/ “Onde ele se sente vivo como se fosse pela primeira vez”.

Na última parte, ele fala literalmente do luto, relata casos como a de uma amiga cujo marido morreu quase instantaneamente de um derrame e ela sentiu uma grande raiva do universo. “Raiva da indiferença – a indiferença da vida que simplesmente continua até que simplesmente acabe.”
É quando o grande silêncio se instaura.

Com saudades,
Luara


Este texto é dedicado a Antonio Silva Filho (1981-2022), confeiteiro e chef paulistano que começou no Gopala, restaurante indiano próximo à Av. Paulista, em São Paulo, e seguiu trabalhando em cozinha até se tornar confeiteiro no D.O.M, restaurante estrelado de Alex Atala. Fora do país, passou por restaurantes como o Murano, em Londres, e foi chef do Cavalariça e do Sal, ambos em Comporta, Portugal, e Bota Sal, em Lisboa, cidade onde viveu os últimos sete anos de sua vida. Antonio deixa o companheiro, a mãe, duas irmãs, um irmão, cinco sobrinhos, uma afilhada e uma leva de amigas e amigos pelo mundo.

Produto

  • Altos Voos e Quedas Livres
  • Julian Barnes
  • 128 págs

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Luara Calvi Anic é jornalista, editora-chefe da Gama revista, onde coapresenta o Podcast da Semana. Foi livreira, editora de cultura e comportamento da ELLE e de outros títulos da Editora Abril, repórter da Trip/Tpm e colaborou com Folha de S.Paulo e Marie Claire. Atualmente, cursa mestrado em ciências da comunicação pela ECA-USP

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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