Coluna da Letrux: Romantizar o sofrimento — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Romantizar o sofrimento

A verdadeira jornada da heroína é feita de arrependimentos, mas, nossa, teria sido bem melhor ter percorrido algumas jornadas sem os horrores

08 de Dezembro de 2021

Aílton Krenak, líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro, proferiu a seguinte frase na mesa “Cartografias para adiar o fim do mundo”, na última Flip (Feira Literária Internacional de Paraty):

“A pandemia não vem pra ensinar nada. A pandemia vem pra devastar as nossas vidas. Eu não sei de onde vem essa mentalidade branca de que o sofrimento ensina. (…) Essa ideia, eu não tenho nenhuma simpatia com ela. Se for pra sofrer, eu não quero aprender nada.”

Estudei uns anos em colégio católico. As freiras me aterrorizavam um pouco nos final dos anos 80, apenas a irmã (era hilário chamá-las assim visto que só tenho dois irmãos homens e de repente lá estava eu dizendo “oi, irmã”) da enfermaria era uma pessoa querida e calorosa, o resto era tudo bem macabro. Era tido como algo nobre você tirar 5 minutinhos do recreio pra rezar. Imagine, eu lá pulando elástico (saudades) e de repente “rogai por nós, pecadores”. Quem? Minha letra era feia, cheguei até a ajoelhar num saco de milho que ficava na capelinha pedindo a Jesus, risos, que minha letra ficasse bonita. Obrigada, caderno de caligrafia, por hoje em dia minha letra ser das coisas que mais me alegro em saber fazer.

Outro dia me contaram que nós nascemos com potencial pra genialidade mas no momento em que entramos no sistema escolar atual, essa magistralidade vai drasticamente caindo. O sistema nos padroniza e nos emburrece. E além disso, a depender da escola (e claro, da família) a culpa nos é implantada.

A frase do Krenak abriu uma clareira na floresta do meu cérebro. Sem que eu percebesse, já romantizei o ‘sofrimento’. Meu e alheio

Cresci com ditados, minhas avós são dessas. E muitas vezes nem completam a frase, é só o início “Diga-me com quem tu andas…” E reticências. Ao longo da vida internalizei um desses ditados: “Só me arrependo daquilo que não fiz”. O mundo me induzia a riscos e se eu me arrependesse, ora bolas, seria uma “aprendizagem”, diziam. Sempre fui cautelosa, por criação e astrologia, comecei a beber com 24, veja só. Estou (coluna) prestes a fazer 40 anos. A balança está na minha frente, a pandemia me emburacou, a análise bombou, me sinto grata pela vida e pelos privilégios, mas ando arrependida demais de certas coisas. Pessoas, relações, circunstâncias. Ah, mas eu aprendi, ouço vozes me apontando o dedo, mas e o custo? E o sofrimento? Essa frase do Krenak abriu uma clareira na floresta do meu cérebro. Sem que eu percebesse, já romantizei o “sofrimento”.Meu e alheio. Como se isso fosse bom, como se a força fosse vir daí, dessa dor. Mas ando refletindo sobre quem eu poderia ter sido sem a parte do sofrimento. Qual seria meu alcance cármico, anímico, físico?

Detesto escola e ao mesmo tempo sonho em abrir uma. Não faz sentido? Não sei como anda a metodologia, nem me sinto apta a destrinchar esse assunto, só posso falar do meu ponto de vista e de todo sofrimento em vão que existiu: tanto de bullying, quanto de matérias que eu tive que decorar e que hoje não servem pra nada na minha vida. Seno, cosseno, log. Decorei, colei, passei. Mas saí da escola sem noção dos meus direitos e deveres. Saí sem noção de economia doméstica. Pouco se falava sobre ecologia, preservação, uma ou outra pessoa mais conectada do magistério nos trazia as pérolas, mas era terreno baldio, onde precisávamos capinar muito pra se achar uma planta rara.

“Ah mas eu aprendi, ah, mas eu fiquei forte, ah mas isso me fez quem eu sou hoje em dia.” Passei anos acreditando nisso, e concordando. Preste a encarar uma nova década, estou tranquila e infalível como Bruce Lee em dizer que “eu me arrependo de um monte de coisas”, teria sido melhor não ter vivido várias situações. A verdadeira jornada da heroína é feita de arrependimentos, no baile dos campeões é que não há tempo de repensar, mas, nossa, teria sido bem melhor ter percorrido algumas jornadas sem os horrores.

Que 2022 seja um ano mais possível. Com arrependimentos sinceros e muitas benesses, muitos prazeres

Quando a pandemia começou, pessoas começaram a falar que isso era uma lição pra humanidade, que iríamos aprender muito, eu não sabia o que pensar, até porque o não saber também é um campo ativo, fiquei ali numa vida às vezes horrível, às vezes onírica. Não sabia, não sei. Foquei no amor, na cozinha, nas coisas que me permitem chamar isso de vida.

Esse texto não tem solução, se é que serve de algo é pra te dizer, camarada, que tá tudo bem em se arrepender. É uma merda não poder voltar atrás, mas nem por isso você tem que sair atropelando tudo e seguindo, só porque o relógio/capitalismo te obrigam. Claro que não posso pensar demasiado em condições “e se aquilo não tivesse acontecido, e se, e se”, mas fazer uma visualização de quem eu poderia ser se o sofrimento não tivesse se alastrado já me dá uma catapultada para quem eu gostaria de ser. Quem eu consigo ser. Quem eu posso ser.Que 2022 seja um ano mais possível. Com arrependimentos sinceros e muitas benesses, muitos prazeres. Gozar é bom e a gente precisa.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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