Mas você é artista — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Mas você é artista

Quando jurei que algo maior fosse acontecer na minha vida, um início de um leve despreocupar com grana, quis o destino que uma pandemia surgisse, nos impossibilitando de tudo

20 de Maio de 2020

Adoro essa história sobre o compositor Philipp Glass: ele foi instalar uma máquina de lavar louça num apartamento em Nova York. “Enquanto trabalhava, de repente ouvi um barulho e olhei para cima para encontrar Robert Hughes, o crítico de arte da revista ‘Time’, olhando para mim incrédulo. Mas você é Philip Glass! O que você está fazendo aqui?” Glass disse que estava instalando a máquina e que logo terminaria. “Mas você é um artista”, retrucou o crítico. Glass terminou explicando que sim, era um artista, mas que às vezes também era encanador e que Hughes deveria ir embora para que ele terminasse o serviço.

Tive alguns trabalhos malucos até conseguir me firmar na arte. Por privilégio familiar, consegui viver na casa dos meus pais até meus 29 anos. Me apoiavam nos projetos que eu inventava, mas gostavam de fazer reuniões comigo, do tipo: “Minha filha, que linda sua banda, mas e de repente pensar em fazer um preparatório para dar aula de inglês em cursinho?” Não os julgo, não há artistas na família, e somos totalmente classe média com planilhas de Excel para que tudo dê certo. Quando criança, sonhava com intercâmbios mas conhecer o estrangeiro só se concretizou quando o dólar ficou R$ 1 mesmo. Aliás, saudades.

Passei uma boa década da minha vida me inscrevendo em editais. Peças, shows, projetos de disco. Eram momentos férteis de criação com as pessoas parceiras das empreitadas, mas que logo viravam um suplício quando a primeira pergunta era “Qual a importância do seu projeto?”. Não podíamos escrever com poesia, nem utilizar tantos adjetivos para falarmos de nós, não era fácil, a competição era imensa, e meu mapa astral não é fluído. Dito e feito: nunca passei. Respirava fundo, voltava a fazer as coisas do meu jeito: com dificuldade, mas com criatividade. Cantando música autoral em barzinho e recebendo guardanapo escrito “Canta Ana Carolina”.

Fiz umas peças que davam pra comprar uma caipirinha depois do espetáculo

No meio do caminho, já fui garçonete em eventos, já fiz teatro-empresa, onde constrangedoramente me vesti de Marilyn Monroe e entreguei o bolo de aniversário para a pessoa errada, no meio de um salão cheio de empresários poderosos, nem é bom lembrar. O auge do constrangimento foi quando me chamaram para aparecer no programa do Didi.

Explico: sou formada em teatro. Fiz umas peças que davam pra comprar uma caipirinha depois do espetáculo. Como atriz, era de praxe ir à Globo fazer seu vídeo, seu registro. Minha primeira aparição na TV é algo hilário, e só concluo que minha vida realmente é uma tragicomédia. Na novela “América” (2005), Deborah Secco era uma brasileira que ia para os Estados Unidos tentar a vida. Simplesmente eu interpretei uma paraguaia que trabalhava na mesma lanchonete que a protagonista. Os policiais chegaram, me pediram documentos, eu disse que não tinha, em espanhol, claro. Fui chamada porque sabiam que eu falava espanhol. Me prendiam, eu xingava, meti uns cacos. Vi muito Almodóvar na vida. Não lembro quanto ganhei. Mas pouco. Minha outra banda Letuce estava crescendo, mas nada que mudasse a vida, eu ainda aceitava propostas malucas de serviço.

Até que veio esse convite para ser a namorada feia do Didi num episódio. Havia uma Big Brother gostosona, sendo a namorada gata. Minha maquiagem recriava um pouco o rosto Frida Kahlo, buço, monocelha. Na época não senti tanto o peso de estar debochando de uma mulher com essas características. Tenho muita vergonha de lembrar que participei disso, mas felizmente o feminismo me salvaria disso anos mais tarde. Depois dessas tentativas todas, havia a esperança de algo acontecer, mas claro que não.

Também fiz trabalhos malucos e bons, preciso dizer. Há 12 anos passei num teste para conhecer a América Latina quase toda, apresentando um programa para o site de uma companhia telefônica. Também passei porque falava espanhol. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Entrevistei o Quico, do “Chaves”, comi gafanhoto, vi o Pacífico, chorei em Machu Picchu. Eu só tinha ido à Disney.

Sigo trabalhando como é possível, perdendo lutas, ganhando outras, colaborando com quem precisa mais que eu

Em 2019, depois de anos recebendo respostas negativas sobre editais, finalmente passei em um. Para gravar meu segundo disco. Eu estava com 37 anos então. Não esqueço do meu professor de teatro Renato Icarahy que nos disse na primeira semana de aula em 2001: “Vocês só farão algo substancial daqui a dez anos”. Estávamos cheios de hormônios, nos jurando incríveis e veio essa bomba. Anos depois ri e pensei “que certeiro!”.

Quando eu jurei que algo maior fosse acontecer na minha vida, um início de um leve despreocupar com grana, meu primeiro apoio monetário para gravar uma obra (e não como os três crowdfundings que já fiz na vida), quis o destino que uma pandemia surgisse no mundo, nos impossibilitando de tudo: de abraçar, de fazer um show, de ver as avós, de viajar, de celebrar, de protestar nas ruas.

Há os que estão fazendo tudo isso, desrespeitando as ordens da Organização Mundial de Saúde. Nem é bom escrever o que desejo para tais seres. Mas saibam que é desgraça e horror. A pandemia se alastra no Brasil de maneira desgovernada, sinto palpitações quando ouço a voz ou vejo o rosto do inominável. Estamos há semanas trancados dentro de casa esperando o isolamento social começar. Não faz sentido, mas o que faz nesse país? Desgraça e horror. Conversando com amigas que moram fora do país, há apoio nesse momento, artistas ganhando auxílios do governo. Enquanto aqui, meu irmão ainda espera aprovação da primeira taxa do auxílio de míseros R$ 600.

Sigo trabalhando como é possível, perdendo lutas, ganhando outras, colaborando com quem precisa mais que eu, me alarmando com as notícias ruins e voltando a ter fé com as boas. Não sabemos como vai ser o futuro, apesar do prognóstico ser assustador. Termino com mais uma história de Philip Glass, que não cansa de me mesmerizar só com seu talento, mas com suas histórias pessoais idem. Glass havia feito uma apresentação num grande teatro em NY, mas ainda vivia de bicos. No dia seguinte, dirigindo um taxi, a cliente que ele levava para casa olhou o nome dele na licença de taxista e disse “Oh, você sabia que você tem o mesmo nome que um compositor famoso?”. Não vai ser fácil, mas nunca foi muito.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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