COLUNA

Francisco Brito Cruz

Quem lê notícia?

Há um risco concreto dos usuários deixarem de acessar as páginas dos veículos e passarem a se informar apenas pelos resumos da IA

22 de Outubro de 2025

As discussões começaram em 2019. A Associação Nacional de Jornais provocou a autoridade de defesa da concorrência no Brasil (o Cade, Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para investigar o Google. O Buscapé (mecanismo de busca de ofertas na internet famoso à época) também reclamou para a autoridade sobre o buscador. O caso continua aberto, agora de maneira ainda mais dramática para o jornalismo.

A pergunta era se a prática de “raspar” toda a internet para apresentar um resultado de busca configurava uma infração à lei que defende a concorrência, pois entregaria o conteúdo relevante sem que as pessoas precisassem acessar o site original e assim impactaria de forma definitiva o tráfego para as páginas dos produtores de conteúdo (os jornais, em especial), que precisam de anunciantes para seu modelo de negócio, da mesma forma que os buscadores. Naquele momento, o foco estava nos “snippets”, aqueles pequenos resumos das notícias que o Google apresenta junto com a manchete: os “snippets” prejudicam a concorrência por audiência e tráfego na internet? Essa  investigação é agora o capítulo mais importante da discussão sobre o jornalismo no país (jornalismo de interesse público, diga-se, que é o que com  método e ética produz a informação que precisamos acessar para tomar as decisões mais importantes de nossas vidas).

A autoridade de defesa da concorrência buscou informações sobre o caso a partir de sua área de estudos econômicos do Cade em 2023, e isso pareceu que iria resolver a investigação em favor do buscador. Por mais que a área técnica tenha apontado o poder estrutural do Google sobre o ecossistema de notícias, também concluiu que “diversos indícios apontam na verdade que o uso de snippet tende a aumentar tráfego ao respectivo site, não havendo elementos suficientes que indiquem que os consumidores não mais precisariam acessar o site concorrente para ter acesso àquele conteúdo.” O parecer considerou uma série de dados de mercados, inclusive requisitados ao Google e aos sites possivelmente prejudicados.

Mas o caso não acabou. Aliás, a questão foi recolocada com a inovação tecnológica. Com o lançamento dos AI Overviews (a nova forma de busca baseada em inteligência artificial generativa), a forma como notícias passaram a aparecer nas buscas se transformou. Não são mais “snippets”, mas resumos produzidos por IA a partir de uma leitura da notícia: as respostas aparecem sintetizadas diretamente na busca. Foi a partir disso que conselheiros do Cade decidiram não fechar a investigação aberta em 2019; em contrário, decidiram ir mais fundo nessa nova possibilidade. Um dos conselheiros abriu inclusive prazo para especialistas e organizações jornalísticas (além do próprio Google) se manifestarem à autoridade sobre as recentes mudanças.

Dar fôlego ao caso faz sentido, pois a forma como consumimos notícias realmente está mudando. Há um risco concreto dos usuários deixarem de acessar as páginas dos veículos e passarem a se informar apenas pelos resumos da IA. Efeitos positivos dos “snippets” podem estar se perdendo? Para alguns, é como se, depois de décadas distribuindo jornais, o entregador começasse a editar o texto antes de entregar. Se o robô lê a notícia, ele é a audiência. Se ele é a audiência, como quem a produz vai vender publicidade para uma audiência de robôs? Ainda, robôs pagarão paywall? Quem vai ler e o quê será lido?

No centro do assunto também está uma discussão antiga: o que é que a lei de direitos autorais protege quando protege o jornalismo? Fatos, por definição, não são protegidos por direito autoral, pois ninguém é dono da informação sobre um acontecimento. Porém, a forma de narrar, escolher e hierarquizar esses fatos é protegida. É o que distingue o texto jornalístico de um relatório de eventos.

Se o robô lê a notícia, ele é a audiência. Se ele é a audiência, como quem a produz vai vender publicidade para uma audiência de robôs?

O problema é que o uso de um modelo de IA para fazer os tais resumos sintéticos vai diluindo essa fronteira. A resposta a partir de uma “leitura do robô” vai usar pedaços de texto, estrutura e raciocínio a partir de reportagens que demandam criatividade, tempo e dinheiro. O que parecia apenas “raspagem” de dados pode virar, na prática, aproveitamento comercial. Senão de uma “obra” criativa, de um trabalho de ir lá e apurar o que aconteceu, pois acontecimentos só viram informação depois que alguém os descobre. O direito autoral sobre uma reportagem nestes casos resolve suficientemente os incentivos para que acontecimentos continuem a ser descobertos por humanos através do jornalismo? E se não, a legislação (existente ou futura) pode reservar outros instrumentos para essa proteção?

Existem argumentos relevantes a serem considerados para enquadrar ou não a conduta do Google como anticompetitiva. O que é o “mercado de buscas” (inclui só buscadores web ou outros hábitos de pesquisar informações, como em redes sociais)? O que nessa história toda é protegido por propriedade intelectual?

A análise do Cade deve, como sempre, se ater ao que a lei de defesa da concorrência pode oferecer: investigar condutas anticompetitivas, identificar abusos de posição dominante e garantir condições justas de mercado. Não se deve esticar o possível dentro da lei a ponto de tornar esse caso a panaceia para o jornalismo. Porém o contexto exige sensibilidade. A fronteira entre “plataforma” e “produtor de conteúdo” está se dissolvendo. E a cada nova iteração de IA, o Google se torna menos um indexador anódino e mais um agente de informação, um papel que, historicamente, pertenceu ao jornalismo. Descobrir fatos, revelar e explicar o que está acontecendo são atividades essenciais para a democracia do futuro, e precisamos descobrir como protegê-las do exercício de um poder econômico que pode prejudicar sua sustentabilidade.

O que o Cade investiga, no fundo, é quem lê notícia, quem lucra com isso e se isso é um problema perante a lei. Quando uma máquina passa a “ler” em nosso lugar, a linha entre público e produto se apaga. A notícia deixa de ser encontro entre quem escreve e quem lê, e vira matéria-prima para outra inteligência, outro mercado, outro discurso. Quem está preocupado com a nossa capacidade de sustentar nosso jornalismo no que ele tem de bem público deve ficar atento com o que vai ser decidido neste caso.

Francisco Brito Cruz é advogado e professor de direito do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), com foco em regulação e políticas digitais. Fez seu mestrado e doutorado em direito na Universidade de São Paulo (Usp). Fundou e dirigiu o InternetLab, centro de pesquisa no tema.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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