COLUNA

Francisco Brito Cruz

O problema da propaganda golpista

É importante delimitarmos o que é a propaganda golpista sob a ótica dupla de proteção da liberdade de expressão e da ordem constitucional

17 de Setembro de 2025

O Supremo Tribunal Federal acaba de concluir o julgamento histórico da tentativa de golpe de 2022. No banco dos réus não estavam só os vândalos e os líderes, mas mobilizações em rede e pela rede. Em dezembro de 2022, o pedido de apoio ao golpe aos comandantes das Forças Armadas ocorreu paralelo a uma mobilização de propaganda política: “Oferece a cabeça dele [nas redes sociais]”, disse um dos líderes, sobre o comandante do Exército que resistia. No dia 8, se a invasão dos prédios dos três Poderes precisou de ônibus, acampamentos e logística, precisou antes de tudo de propaganda: convocação, apoio público, a criação de uma narrativa que normalizasse o absurdo. As ações de comunicação foram parte da tentativa de travar violentamente o funcionamento da democracia. Não ver isso é ignorar o que vocalizavam os próprios executores da tentativa.

O devido processo aplicado no julgamento do golpe é um ponto de partida para pensarmos seu legado. Ele ilumina que é necessário ter bons critérios para entender quando a comunicação passa essa linha, sob risco de consolidar maus precedentes para a liberdade de expressão. Casos extremos, como os de 2022, movimentam o jogo, mas a partir deles é necessário continuar a pensar sobre a linha que divide a opinião política (inclusive dura, ácida, radical) da propaganda antidemocrática, aquela que passa a operar como combustível de um projeto golpista. Essa linha pode servir para cobrar das plataformas digitais ações para remover conteúdos ou contas, responsabilizar grupos que visam atentar contra os poderes constitucionais ou, de outro lado, ter a tranquilidade para preservar o espaço de manifestação de minorias.

Até agora, o STF tem atuado sob a pressão da crise: decisões duras, medidas de emergência, a criação de uma necessária “doutrina” prática de democracia defensiva e militante. Foi o que impediu que o caos fosse ainda maior e que a responsabilização acontecesse. Mas viver só de improviso é arriscado. É importante delimitarmos o que é a propaganda golpista sob a ótica dupla de proteção da liberdade de expressão e da ordem constitucional.

Quando falamos de propaganda é importante lembrar de onde o nome veio. Propaganda não nasceu no marketing, mas na guerra. No começo do século XX, governos em guerra descobriram que, além de tanques e fuzis, era preciso convocar corações e mentes. Pôsteres chamavam jovens ao front, jornais exaltavam a pátria, filmes diziam quem eram os heróis e quem eram os inimigos. Era comunicação concentrada a serviço de um objetivo estratégico: manter a moral da tropa e organizar a sociedade inteira em torno de uma causa.

É importante delimitarmos o que é a propaganda golpista sob a ótica dupla de proteção da liberdade de expressão e da ordem constitucional

Essa lógica continua. O que mudou foram os palcos e os alvos. Regimes autoritários usaram propaganda para consolidar poder. Ditas democracias, para resistir ao que chamaram ameaças externas. Esforços coletivos de comunicação moldaram identidades, mas também serviram para organizar ações e, em alguns casos, abrir caminho para a violência política.

E a propaganda não precisa ser explícita para funcionar. Grupos extremistas sempre usaram símbolos, números e até memes como códigos de reconhecimento. São sinais aparentemente inofensivos, mas que organizam pertencimento e reforçam identidade. No Brasil, expressões como “festa da Selma” cumpriram exatamente esse papel: uma senha interna que parecia piada, mas era, de fato, um chamado para a ação. Nesse jogo de códigos, a violência se organiza antes mesmo de ser nomeada como tal. Aparece transcendendo a expressão individual e desembocando em projeto coletivo.

Essa dimensão simbólica também revela o poder da propaganda em criar comunidade. Não é só comunicação, é cola social. Quem compartilha desses códigos sente-se parte de um “nós contra eles”, de uma missão maior. É por isso que manifestações radicais não atraem apenas militantes engajados, mas também simpatizantes difusos, curiosos que buscam identidade. A propaganda transforma ressentimento em pertencimento. Na rede isso pode ser ainda mais explosivo. Como as redes sociais amplificam códigos e símbolos, transformando marolas em tsunamis.

Com o julgamento, a hora é de ir estruturando critérios claros. O que significa, de fato, “atacar as instituições”? Como distinguir o ato preparatório do ato executório de um crime contra o Estado de Direito? Até que ponto uma convocação online é incitação, e quando ela passa a ser propaganda de golpe? Essas perguntas parecem técnicas, mas são profundamente políticas. Quanto mais ganhamos clareza dos critérios, maior a legitimidade para as instituições.

Cinco pontos parecem importantes para o começo de conversa. Primeiro, especificidade: debatermos sobre os exemplos “de almanaque” e aqueles casos de “zona cinzenta”. Entre eles, podemos compreender fatores contextuais (quando se fala), de linguagem (o que se diz), simbólicos (compreendendo os códigos de extremismo e violência), de quem fala e quem são seus interlocutores. Bem vindos serão trabalhos que se debruçam sobre o julgamento e criem estas linhas.

Até que ponto uma convocação online é incitação, e quando ela passa a ser propaganda de golpe?

Em segundo lugar, olhar para o tempo de medidas de contenção. Não é a mesma coisa impedir um perfil de seguir publicando no futuro e apagar algo que já foi dito no passado; medidas cautelares e correções retroativas exigem justificativas distintas.

Terceiro, quando se trata de remoção de conteúdo é bom que haja o máximo de transparência possível (tendo como limite a preservação da aplicação da lei em investigações que podem demandar sigilo, por exemplo).

Quatro, devido processo. Mesmo que o alvo imediato sejam usuários radicais, é preciso que existam caminhos de recurso, inclusive para as plataformas, já que decisões desse tipo impactam milhões de pessoas. No afã de seu dever de cuidado, empresas de internet podem acabar removendo injustamente algo, por exemplo.

Por fim, proporção: cada agente deve ser punido de acordo com o tamanho de sua participação, sob pena de a própria legitimidade das medidas se fragilizar.

O julgamento do golpe mostrou que a democracia brasileira já tem anticorpos. Mas, sem um esforço para estruturar melhor o que entendemos por propaganda golpista, esses anticorpos precisam crescer saudáveis e resilientes. Precisamos, urgentemente, de um acordo mínimo sobre o que é propaganda golpista e como enfrentá-la.

Francisco Brito Cruz é advogado e professor de direito do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), com foco em regulação e políticas digitais. Fez seu mestrado e doutorado em direito na Universidade de São Paulo (Usp). Fundou e dirigiu o InternetLab, centro de pesquisa no tema.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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