COLUNA

Fabiana Moraes

“Sabemos seu nome e como lhe encontrar”

Por que o Estado não enfrenta os estupros sistemáticos cometidos pela PM brasileira?

05 de Novembro de 2025

Eu li a sua reportagem e quero lhe contar que o que esses policiais fazem não é novidade. Eu fui parada em uma blitz à noite, na Imbiribeira, perto do aeroporto. Eram dois homens. Pediram para que eu saísse do meu carro. Mostrei a carteira de motorista, não havia nada errado. Um deles disse que eu entrasse na viatura e o outro ficou lá fora. Fui obrigada a fazer sexo oral nele. Depois, esse PM saiu do carro e o outro entrou. Fui obrigada a fazer sexo oral nele também. Quando terminaram, me mandaram embora e disseram: “sabemos seu nome e como lhe encontrar”.

***

O texto acima reconstitui um e-mail que foi enviado para mim no meu antigo endereço eletrônico corporativo. Era 2013 e eu trabalhava no Jornal do Commercio, em Pernambuco. Eu tentei várias vezes resgatar a mensagem original, sem sucesso — saí há dez anos da redação. Mas eu nunca esqueci os detalhes da violência do episódio.

Era dezembro e eu havia acabado de publicar uma reportagem chamada Casa-Grande & Senzala, baseada nos 80 anos do mais famoso livro de Gilberto Freyre. Inicialmente, minha ideia era abordar a dinâmica entre sexo e poder. Mas, logo no início da apuração, percebi que não era exatamente sobre sexo que eu iria tratar. Era sobre estupro.

Na série, eu falei sobre Carol, Bianca, Patrícia e Stephanie. Elas viviam à beira de um canal na Zona norte de Recife. Eram exploradas sexualmente, e por uma “sessão”, recebiam R$ 2, R$ 5, às vezes um prato de comida, outras uma pedra de crack. Entre os “clientes” (ou melhor, abusadores) mais comuns estava a polícia militar. Uma prática comum realizada pelos PMs era dar batidas no local, espantar os homens presentes ali, ficar com os trocados e não apreenderem as jovens com uma condição: sexo oral ou penetração. Carol tinha 18 anos, Patrícia 19, Stephanie 17. Bianca tinha 14 quando vivia ali pelo canal. Quando eu comecei a investigação, ela estava internada há mais de um ano.

Foi a foto de Bianca antes da internação, aliás, que me impressionou enquanto eu checava os documentos presentes no Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA). Foi lá, buscando menores vítimas de abusos, que eu encontrei pela primeira vez registros das jovens. Uma foto mais antiga mostrava uma das várias passagens de Bianca pelo departamento. Ali, ela tinha 13 anos e pesava somente 24 quilos. Fazia pouco tempo que um policial de folga colocara uma arma na sua cabeça quando ela tentou escapar de sua tentativa de estupro.

 Reprodução/JC

Eu acompanhei parte do cotidiano do grupo durante cerca de três meses. Carol estava grávida.

A reportagem repercutiu não exatamente porque os relatos de estupros chocaram as pessoas — para muita gente, se aquelas meninas estavam pelas ruas, que se virassem. Foi a entrevista do então secretário de Defesa Social, Wilson Damázio, o estopim de um processo que terminou com sua exoneração: quando o entrevistei e falei sobre os constantes estupros cometidos pela PM no caso das jovens que eu acompanhava, ele, em dado momento, disse: “Aqui tem muitos problemas com mulheres, principalmente. Elas às vezes até se acham porque estão com policial. O policial exerce um fascínio no dito sexo frágil. Eu não sei por que é que mulher gosta tanto de farda. Todo policial militar mais antigo tem duas famílias, tem uma amante, duas. Eu sou policial federal, feio pra cacete… a gente ia para Floresta [Sertão de Pernambuco], para esses lugares. Quando chegávamos lá, colocávamos o colete, as meninas ficavam tudo sassaricadas. Às vezes tinham namorado, às vezes eram mulheres casadas. Pra ela é o máximo tá dando pra um policial. Dentro da viatura, então, o fetiche vai lá em cima, é coisa de doido.”

Não podia ser diferente: as falas do então chefe de quase 60 mil policiais em todo Estado repercutiram muito mal. Por conta da pressão de movimentos sociais e do público em geral, o secretário pediu exoneração.

Foi nesse contexto que o e-mail anônimo chegou para mim. Era um relato chocante e que mostrava claramente: a PM não investia “apenas” contra jovens em situação de miserabilidade. Ela também estuprava mulheres em aparentemente inocentes blitzes.

Eu respondi na mesma hora a mensagem daquela mulher corajosa (afinal, procurou uma jornalista para registrar a violência policial que havia sofrido): disse que poderia ouvi-la, que manteria sua identidade em segredo.

Mas ela nunca me respondeu. Eu sei o que ecoava em sua cabeça:

“Sabemos seu nome e como lhe encontrar.”

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Essa mensagem anônima voltou para minha retina quando, no dia 11 de outubro, os jornais noticiaram que uma mulher de 48 anos procurou a 14ª Delegacia da Mulher no Cabo de Santo Agostinho, cidade vizinha a Recife, para denunciar que havia sido parada por uma blitz e levada por um PM até um posto do Batalhão da Polícia Rodoviária (BPRv). Aos dois colegas de farda que o acompanhavam, ele informou que conduzia a mulher para “beber água”. Lá, ele a obrigou a fazer sexo oral. No carro, suas duas filhas a aguardavam.

Quantas mulheres já deixaram de procurar uma delegacia com medo de sofrer ataques de uma corporação destinada a cuidar de suas seguranças?

Quantas mulheres já foram violentadas desta maneira? Levadas para “beber água”? Quantas mulheres já deixaram de procurar uma delegacia com medo de sofrer ataques de uma corporação destinada a cuidar de suas seguranças? Quase 13 anos após as denúncias da reportagem e daquele e-mail aterrorizante, o roteiro é quase o mesmo.

Quando escrevi sobre aquelas jovens do Matagal, quis mostrar que as relações de poder do Brasil escravocrata e patriarcal não morreram com a assinatura de uma lei. A senzala, o espaço da humilhação e da violência, virou viatura, camburão, abrigo improvisado, cela, posto rodoviário. Os senhores têm farda, carteira funcional e porte de arma.

Infelizmente, os dados públicos recentes não podem quantificar os processos de estupro por policiais militares em Pernambuco ou no Brasil de forma agregada e uniforme. A Justiça Militar não mantém base pública de fácil acesso para esse tipo de crime específico na esfera estadual. Consultei a Corregedoria da PM pernambucana.

Em nota, a Corregedoria informou que, além do caso dentro de posto policial no Cabo de Santo Agostinho, cuja apuração segue em trâmite, foram registradas outras duas denúncias em 2022, uma envolvendo um policial civil e a outra um policial penal, com as vítimas mulheres em custódia. As denúncias foram formalizadas e os policiais submetidos a processos administrativos e disciplinares. O policial civil foi demitido; já o caso envolvendo o policial penal foi arquivado “por insuficiência de provas”.

Ainda de acordo com a Corregedoria, na esfera criminal, a Polícia Civil de Pernambuco concluiu o inquérito com indiciamento do policial civil em março de 2022. Sobre o policial penal, o caso segue sob investigação por meio da Delegacia de Buíque. As instâncias administrativa e jurídico-penal são independentes.

Entretanto, a repetição de casos em diferentes estados reforça que a prática avassaladora não se trata de um ou outro caso isolado. Basta que se considere que, em diversos estados, denúncias de abuso sexual durante abordagem policial emergem de modo semelhante. Aqui, cito algumas:

  1. São Paulo – uma mulher de 33 anos denunciou ter sido vítima de estupro coletivo cometido por policiais militares no Guarujá, litoral. O crime ocorreu em agosto de 2023, durante uma festa, e foi formalmente comunicado à polícia apenas em dezembro, quando a vítima reuniu coragem para registrar o caso. Doze homens participaram da agressão, 11 deles pertencentes à Polícia Militar. De acordo com a apuração, a mulher foi drogada antes de ser violentada.
  2. Rio de Janeiro – Quatro policiais militares foram presos acusados de participar de um estupro ocorrido em Saquarema, na Região dos Lagos. As detenções foram realizadas pela Corregedoria da Polícia Militar após uma investigação interna sobre o caso. Segundo a corporação, a Corregedoria foi acionada depois que a vítima registrou a denúncia na 118ª Delegacia de Polícia (DP), em Araruama.
  3. Mato Grosso – Um policial militar teve a pena reduzida de 38 para 33 anos e 9 meses de prisão por estupro e atentado violento ao pudor contra diversas vítimas em Várzea Grande. O Tribunal de Justiça manteve a condenação, destacando o peso dos depoimentos das vítimas. Segundo os autos, o PM, com ajuda da esposa — uma adolescente na época —, abordava pessoas nas ruas e as obrigava, sob ameaça de arma de fogo, a atos sexuais.

A cultura do estupro na polícia é parte da arquitetura histórica do Brasil: da senzala rural aos becos urbanos, dos senhores com chicote aos agentes com arma

Não se trata de falha isolada ou “maçã podre”. A cultura do estupro na polícia é parte da arquitetura histórica do Brasil: da senzala rural aos becos urbanos, dos senhores com chicote aos agentes com arma. A farda legitima a autoridade, e a autoridade assume o direito de penetrar, arrancar, violar. As mulheres paradas nas blitzes, as meninas do canal — diferentes idades, mesma condição: corpo disponível à violência.

Quando aquela mulher me contou, no e-mail, que foi parada em blitz e obrigada a fazer sexo oral em dois PMs dentro de viatura, ela não narrava “um incidente”. Ela desenhava o padrão: abordagem – estupro – impunidade. O caso de 2025 no Cabo de Santo Agostinho repete esse expediente: a abordagem oficial criou a cena, o policial-senhor consumou o ato, a instituição afirma que irá punir exemplarmente.

Será?

***

“Sabemos seu nome e como lhe encontrar.”

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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