Maria Ribeiro
Medo pra ter coragem
Devo aos rapazes que me assaltaram em Laranjeiras os dentes cravados na vida e uma fala que agora quero cumprir nem que seja de birra
Eu sou escritora, eu disse – a arma na cintura levantando o blazer azul da Cris Barros. Quer dizer, o meu blazer azul. Deixa eu pegar o computador? Vocês ficam com o carro, o celular, a bolsa, tudo, eu só preciso dos meus textos (não é verdade).
Foi a primeira vez. Eu disse ser o que dizia querer ser na infância, o que dizia querer ser na adolescência, o que queria dizer ser em silêncio. Sou escritora.
Cena 1. Exterior. Noite. Rua General Glicério. Bairro das Laranjeiras. Da música do Nando. Do All Star azul. Bairro das Laranjeiras, da Cassia. Eller. Mãe do Chico Chico. Chico Chico, aquele “gênio gênio”. Não conhece? Sugiro parar aqui e ouvir Ninguém, música dele com outro Francisco, o Gil. Sugiro parar aqui.
Eu sou escritora.
Às vezes, a gente precisa ter muito medo pra ter coragem. Ou pra ter coragem mesmo com medo. Te amo, Freud
Às vezes, a gente precisa ter muito medo pra ter coragem. Ou pra ter coragem mesmo com medo. Te amo, Freud.
Exemplos de quando fui em frente apesar/a despeito da física que preenchia de pânico meus 52 quilos:
a) No dia em que saí de casa pela primeira vez, aos 23, pra viver com meu namorado.
b) Quando saí pela segunda, aos 29, pra morar sozinha com meu filho.
c) Quando saí pela terceira, aos 40, repetindo a marca dos 29, só que agora com dois meninos.
d) Quando fui à Disney, e entendi que o amor é revolucionário ate na fila do elevador do Homem Aranha.
Escrevo essa coluna do quarto do meu filho mais novo. Hoje é dia 14 de fevereiro de 2022. São 10h de uma segunda-feira e eu continuo achando bom estar aqui. É estranho, porque “bom” é o oposto do que qualquer ser humano que mora no Brasil poderia dizer do seu país. Classifique o seu país em cinco categorias, sendo excelente um lugar “incrível” pra gastar sua ficha única de existência, e, “sofrível”, como o próprio nome diz…, como sendo altamente insatisfatório e perturbador.
Eu deveria optar por essa nota. Que seria equivalente a zero. O racismo que mata um congolês de 24 anos na praia, a violência que tira a vida de crianças de baixa renda, a estupidez como projeto de cultura e de educação, o machismo, o preconceito, a intolerância, a cenografia do BBB, tudo isso, junto, deveria nos dar justa causa na hora de devolver o ingresso. Mas eu, romântica que sou, não posso com um amanhecer…
Gosto até de não gostar porque significa que não desisti. Será que alguém pode escrever isso nos maços de cigarro?
E como se o sol não fosse suficiente, eu ainda gosto de acordar, de mandar mensagem, de ver meus meninos indo ali, de ouvir a Tati Bernardi no Calcinha Larga, de passar delineador, de estudar o texto da minha peça, de ouvir a Linn na TV aberta, de fazer planos, análise, brigadeiro. Eu gosto até de não gostar (é verdade).
Porque enquanto não gosto significa que não desisti. Será que alguém pode escrever isso nos maços de cigarro? E a verdade é que tô com a arma na cintura desde 2016.
O golpe no Brasil, o golpe na minha casa, a partida dos meus dois maiores amigos, a morte me explicando que agora vai ser assim (é preciso dar festas).
Não, não recuperei o computador, e, portanto, nem os textos. Mas devo aos rapazes que me assaltaram em Laranjeiras os dentes cravados na vida e uma fala que agora quero cumprir nem que seja de birra.
Eu sou escritora.
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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