Trecho de Livro: O Meu Amante de Domingo — Gama Revista

Trecho de livro

O Meu Amante de Domingo

Protagonista do segundo romance da portuguesa Alexandra Lucas Coelho vive um caso tórrido enquanto trama uma vingança contra um ex-amante

Leonardo Neiva 14 de Janeiro de 2022

Autora de 14 livros entre romances, tomos de não-ficção e infantojuvenis, a portuguesa Alexandra Lucas Coelho atuou ao longo de 30 anos como jornalista, repórter e editora, cobrindo conflitos em diversas partes do mundo e chegando a ser correspondente do jornal Público em Jerusalém e no Rio de Janeiro.

Em seu segundo romance, lançado originalmente em 2014, mas que só desembarca agora por aqui, ela faz colidir sentimentos intensos de desejo e fúria, canalizados em sua protagonista, uma mulher de 50 anos que planeja uma vingança sangrenta contra um ex-amante. Integrante do Clube F, clube de livros feministas da editora Bazar do Tempo, “O Meu Amante de Domingo” encontra em sua personagem principal visões singulares sobre a vida e outras questões importantes, como as aventuras sexuais levemente pornográficas que mantém com um mecânico e a obra incendiária de Nelson Rodrigues.

Às voltas com um jogo literário explosivo, a autora chama a atenção desde as primeiras frases tanto pela originalidade de suas descrições quanto pelo caráter singular da psicologia de sua protagonista. Tensa, envolvente e quase sempre hilária, a escrita de Alexandra é direta e explícita sem esconder nem por uma linha um estilo único.


Capítulo III – O mecânico iminente

Cúpulas, cascatas, coroas, tudo cintilava nesse domingo, 3 de Junho, primeiro do Verão, ou seja, ontem, quando atravessei a Ponte 25 de Abril a cantar Oh Lord / won’t you buy me / a Mercedes Benz? / My friends all drive Porsches, I must make amends, talvez porque ia para a cama com um mecânico, talvez porque nem Mercedes, nem Porsche nem limusines impediram Janis Joplin de morrer junto à cama aos vinte e sete anos, talvez porque sempre me impressionou o fim da canção em que Leonard Cohen a lembra na cama: That’s all, I don’t even think of you that often. Eu tinha vindo pelo caminho de baixo, continuando da A6 para a A2, só para ver Lisboa dali, flamejante. E foi assim que descobri o melhor remate para o esmagamento por pata de elefante: Pronto, é isto, nem sequer penso assim tanto em ti.

Os gajos dão uma abada às gajas nos remates, sem sequer citarem Leonard Cohen. Não que as gajas não saibam rematar, mas quando o fazem são gajos. Há gajas muito gajo, e não estou a falar de lésbicas, nem necessariamente bissexuais. Vice-versa para os gajos, há gajos muito gaja, etc., etc. Sabemos bem como o género não está fixo entre as pernas. O meu amante de domingo diria que vareia.

Então, entre a Ponte 25 de Abril e o Aqueduto das Águas Livres, uma miragem nasceu no meu lobo occipital e desenrolou-se em segundos, sem que eu perdesse o controle do Lada Niva. Eu via o Castelo onde tudo começou entre mim e o caubói, concretamente as ruínas do Paço com oito séculos de experiência acumulada quanto a restos mortais. Lá estava o filho da puta preso a quatro estacas, em forma de Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci, na versão mais aberta de braços e pernas. Nu como um rapaz do Levante no sonho antigo de um imperador, ligeiro tufo cor-de-mel no púbis, pénis circuncidado em descanso, aquela tensa, tesa passagem entre a axila e o bíceps que é o vislumbre do abismo. E, pairando sobre a cabeça, a pata dianteira de um elefante indiano, que se distingue do africano por ter cinco e não quatro unhas. O fiel proboscídeo só aguardava a ordem que me cabia dar em seguida, mas não antes de eu engolir aquele nec plus ultra da raça dos filhos da puta com a minha interminável boca, o meu interminável estômago, a minha interminável pélvis, apertando-o com os meus intermináveis anéis fortalecidos por uma vida de pompoarismo amador.

Não sabemos nada de com quem não fomos para a cama, e não sabemos tudo de com quem fomos para a cama, porque ninguém fode com duas pessoas da mesma maneira, como Heráclito bem disse sem palavrões

Ok, não uma vida, desde os vinte anos, vá. A água é um bom treino, contrair iliococcígeo, pubococcígeo e períneo após nadar. Mas nesse domingo só mais tarde, por que o encontro com o mecânico era às onze.

A vantagem de chegar cedo a Carnide ao domingo é conseguir estacionar o Lada naquele lugar que daqui a nada será tomado por um devorador de nacos na pedra. Terá sido pelo nome que a restauração de Carnide enveredou por este nicho de mercado? Seja como for, estacionei sem problema às nove e meia, tratei da Lolita, saí para comprar preservativos e ia dobrar a esquina quando o iminente amante escreveu a dizer que acabava de estacionar perto, portanto uma hora mais cedo. Gosto de gente ansiosa, penso que já somos dois e fico tranquila. Mas a verdade, que a mim própria me espanta, é que eu estava tranquilíssima, como se ir para a cama com um mecânico fosse mesmo clichê. Só nos filmes porno, e sei lá quando foi a última vez que vi um.

Não, o meu clichê não é ir para a cama com um mecânico e sim com futuros grandes amigos, e nesse saco cabem vários níveis de tesão, e a longo prazo falta de tesão, como suponho que na vida de toda a gente, mas não sabemos nada de com quem não fomos para a cama, e não sabemos tudo de com quem fomos para a cama, porque ninguém fode com duas pessoas da mesma maneira, como Heráclito bem disse sem palavrões. Um alívio não estarmos condenados a ser assim ou assado, já que o bom vira óptimo que vira sofrível que vira péssimo, dependendo da fantasia e da teimosia, da inclinação e da dedicação, da profundidade e da velocidade de miragens por segundo na cabeça, além das circunstâncias, que podem ser relevantes, e do tamanho, que sim, é relevante, mas não estou a pensar só no comprimento, nem só no pau.

Disse ao mecânico para ir dar uma volta pelo coreto enquanto eu ia comprar cerejas. Respondeu que podia ir comprar cerejas comigo, smile, reticências. Preferi que não, mas ele estava a fazer tudo certo, e ainda isto: quando enfim me encontrou, na esquina onde deixara o carro, abriu a porta de trás e tirou do banco uma braçada de flores. Gerberas, lírios, rosas, margaridas, jacintos, gladíolos, folhagens, agarrando na base eu nem conseguia ver o caminho. Não é pouco, consigo mesmo pensar num distraído, mas namorado, que nunca o fez.

Subi com tudo, flores, cerejas, preservativos, mecânico. Incluindo a Lolita, éramos uma multidão na cozinha enquanto eu inventava uma jarra, cortando a cabeça de uma garrafa de plástico, porque a casa está reduzida ao essencial. O mecânico ficou a ver-me separar as flores das folhagens para que coubessem, e depois veio atrás de mim, da cozinha para a sala, e em volta da sala, até achar o lugar certo para a garrafa, ele, não eu.

Um dia, não muito longe, um pouco antes do derradeiro apocalipse, alguém vai descobrir uma forma de produzir energia com a tensão que há num determinado espaço quando duas pessoas estão prestes a ir para a cama pela primeira vez.

Capítulo IV – Como dizer você na cama

Eu e o mecânico: onças numa clareira, passos em volta, pêlo hirto. Ou o ar dentro de um balão. Há que chegar ao ponto em que o corpo estoura no ar.

Ofereci-lhe um café, sentámo-nos na varanda. Ele contou que vai à oficina domingo de manhã porque a mulher trabalha numa igreja, só volta às duas, deixa o almocinho feito. Têm uma boa vida, moram numa urbanização na Bobadela, ela é uma santa e gosta de sexo. Com a mãe do filho também se entende bem mas ela mora na Coina porque faz tortas de Azeitão, dá-lhe mais jeito. E por aí fora até aos castanheiros do avô no Rebordelo. Onde fica isso?, perguntei. Em Trás-os-Montes, respondeu. Ah, adoro Trás-os-Montes, disse eu, no tom daquelas pessoas que dizem que adoram Fernando Pessoa.

Como se fosse possível detestar Trás-os-Montes.

Um dia, não muito longe, um pouco antes do derradeiro apocalipse, alguém vai descobrir uma forma de produzir energia com a tensão que há num determinado espaço quando duas pessoas estão prestes a ir para a cama pela primeira vez

Por cada pergunta um buraco, por cada buraco cem perguntas, estou habituada. Claro que quanto menos soubermos menos pensamos, e neste caso tratava-se de não pensar nada, mas esse é o ponto em que o corpo faz tudo, e eu ainda não tinha chegado lá. Aliás, a certa altura comecei a andar para trás, duas, quatro, oito vezes mais rápido do que o filme andara para a frente. Eu tinha mesmo engatado o mecânico que arranjara o meu carro, ex-marido de uma pasteleira da Coina, agora casado com uma santa? Tinha mesmo comprado uma caixa de 12 (doze) preservativos para foder com ele? Íamos mesmo para a cama, e antes das duas da tarde?

Dai-me um homem que não pense. Um homem de pau duro que eu queira beijar, porque sem beijar não dá. Não amará nem será amado. E dirá: posso beijá-la?

Juro que foi o que ele disse, interrompendo a fuga em todos os sentidos e para qualquer lado, porque não só a cara da pergunta era de emergência, como o corpo pulou para a frente antes da resposta, disto resultando que ele ficou curvado e eu presa à cadeira enquanto não forcei os ombros dele até estarmos ambos de pé, e que dizer sobre o que se passava entre as pernas dele e a cabeça quando me encostei, era um daqueles casos de altos e baixos-relevos em simultâneo, uns fixos, outros móveis, pau, lábios, língua, mamilos, nádegas mais não sei quantos braços, dado que um tinha desaparecido debaixo da minha saia mas pareciam sobrar uns três, para já não falar dos dedos, além de que praticamente eu já não respirava.

Aleluia.

A casa é sala-e-quarto, a meio caminho ele abriu a minha blusa e, sem deslocar o epicentro do beijo, puxou-a para o chão. Parámos na moldura da porta, eu com a saia às três pancadas, ele curvando a cabeça para o peito quase liso, subitamente protuberante nos bicos, largos, escuros. Claro que aos vinte eu queria ter peitos, mas aos cinquenta seria a guerra com a gravidade, imagino. Ajoelhei-me na cama, a desatar o nó da fita que atava a saia, e no tempo de baixar a cabeça para o problema ele desfez-se de tudo o que o atrapalhava: camisa, calções, sapatos e os boxers de algodão, que pareciam uma bandeira no quarto. Puro vermelho veneziano, não me lembro de nada tão vivaz contendo um pau.

Era um pau com que se podia trabalhar. Não muito comprido mas grosso, pelo menos no estado apopléctico em que eu o via. Não muito comprido não quer dizer curto: era ok. Foi o que depois lhe disse, sem mentir (o que do ponto de vista dos gajos pode querer dizer: cruelmente sem mentir), quando ele me perguntou, já fora da cama, o que eu achava do seu menino. As minhas sobrancelhas devem ter subido testa acima. E respondi, rindo e repetindo, como se isso dobrasse o valor: é ok, é ok.

De volta à cama: eu desatando o nó górdio, ele nu como um touro. A comparação procede, dez quilos a mais, concentrados entre o pescoço e o baixo-ventre, com repartição equitativa de pêlos, embora não demasiados, a não ser onde jamais eu vira tantos: o escroto. Mas entre livrar-me da saia com uma mão e agarrar um preservativo com a outra, tive apenas alguns segundos de contemplação. Desfeito o nó, já ele estava de preservativo em riste, e a partir daí não consegui ter distância para ver mais do que a cara dele, até ao fim do primeiro round.

O primeiro round durou um minuto. Mulher deitada de barriga para cima, homem deitado no meio das pernas dela, flexão, convulsão, cara contraída para a direita, cara contraída para a esquerda, pânico frontal na cara, ele abre os olhos, foi.

Foi?

Nunca ter fodido com um mecânico não era o problema, o problema era nunca ter fodido com alguém que tratasse por você. Talvez por isso também não me tenha dado para dizer, foda-me, coma-me. Seria como estar numa novela porno em Cascais

As minhas sobrancelhas deviam estar muito testa acima, porque ele perguntava, sem sair de cima e de dentro, está tudo bem?, está tudo bem? Eu pensava como pedir a alguém que trato por você que para a próxima desse um sinal, isto para não dizer de caras que foi rápido demais. Quem sabe avisando desse para retardar, mudar de posição, ou talvez não, mal o conhecia de vista. Nunca ter fodido com um mecânico não era o problema, o problema era nunca ter fodido com alguém que tratasse por você. Talvez por isso também não me tenha dado para dizer, foda-me, coma-me. Seria como estar numa novela porno em Cascais.

Não sei como fazem os betos em Cascais. Olhe, avise quando estiver quase a vir-se? Ou, agora quero que me coma o cu? Questão de hábito, não me soa.

Produto

  • O Meu Amante de Domingo
  • Alexandra Lucas Coelho
  • Bazar do Tempo
  • 160 páginas

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