Quarenta anos de curiosidade, neuras e glórias — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Quarenta anos de curiosidade, neuras e glórias

Números são números, mas ajudam a organizar o caos que é viver

12 de Janeiro de 2022

Fiz 40 anos no quinto dia desse ano. Quando eu era criança lembro de achar que pessoas com 40 anos ou eram muito adultas já (pessoas da minha família) ou muito loucas (rockstars em geral, artistas marginais, esse clima). Sou a caçula de três. Meu irmão mais velho tem muitas anotações de tudo o que aconteceu com ele; meu irmão do meio também conta com alguns registros; mas eu, não dava mais. Minha mãe conta que um dia encontrou uma amiga na rua que a viu com dois filhos e grávida, e a amiga comentou: “Mas Sônia, você só tem duas mãos!”. Minha mãe queria ter uma menina Letícia, e cá estou. Ainda sobre minha mãe, ela diz que quando eu era criança, tinha alguma noção de tempo, falava frases que outras crianças não falavam, sobre o tempo: “Esse ano passou muito rápido, eu não estou aproveitando minha vida”, eu soltei pra ela com sete, oito anos. Esquisitinha desde sempre.

Números são números, mas ajudam a organizar o caos que é viver. Em sociedade, e no capitalismo, que fique claro. Porque se vivêssemos num outro sistema, a contagem de horas, datas seria mais em vão. E as preocupações seriam lunares e solares. Desde criança não compreendo o calendário gregoriano. Tive uma fase bem hippie com o calendário maia, mas ainda assim e sempre: o tempo é um mistério pra mim. Foi ontem que saí correndo numa fazenda e não vi o arame farpado e o sol brilhou, e eu usava óculos e VRAUN, finquei no arame farpado. Gente, foi ontem. Oito aninhos. Foi ontem. Mas não, fiz 40 anos. Nunca fiz nenhum procedimento estético e respeito quem faça, mas morro de medo de me olhar no espelho e perguntar “Quem é você?”, pois já faço essa pergunta muitas vezes, mas de um jeito mais interno, se eu levar pra forma também, lascou. Quem são essas pessoas? – vai ser demais pro meu processo analítico (Amo uma história do Gabriel García Márquez, ao ser perguntado sobre os 56 anos de casamento com sua esposa, Mercedes, respondeu que havia dias que ele acordava, olhava pro lado, via Mercedes e perguntava “Quem é você?”)

Tenho 40 anos e não sou mãe. Isso ainda pode mudar, mas até aqui não quis. Sou devota de bebês e crianças, mas daí a abraçar a responsabilidade em ter uma, ainda não consigo. Ainda sou paralisada pelos horrores: do mundo, e os meus. Os meus, muitas vezes vencem os horrores do mundo. Morro de medo dos meus defeitos aparecerem num ser humano que não tem culpa de nada. Não sou mãe e já sofro. Preocupada até o último fio de cabelo. Minha prima morreu com 19 anos (morreu enquanto fazia aniversário até) de meningite meningocócica, grande trauma da minha vida. Estou em análise trabalhando, mas tudo isso ainda me impede de ter filhos, porque eles não podem morrer. Só que podem. E eu não quero. Eu não posso viver isso. Lembro muito da minha ex-analista, Edna, em algum momento eu estava falando que eu não conseguia pensar em ser mãe (eu estava prestes a fazer 30, que engraçado lembrar) e eu estava falando alguma coisa e ela disse “Sim, dar à luz é também dar a sentença de morte”. Paniquei. Todo neném que nascia, eu ia visitar e ficava “Que amor”, mas pensando “Você vai morrer”. Um horror a cabeça neurótica, mas estou aí nadando no mar, fazendo análise, utilizando alucinógenos (com controle) para romper paredes. Tudo que me causa movimento é importante. Se deixar, eu finco. E não posso.

David Bowie dizia que envelhecer é maravilhoso porque você finalmente se torna quem sempre deveria ter sido. Palavras mágicas

Pesei o último parágrafo, perdão. Mas é isso, fiz 40. Gosto da minha vida, da minha cabeça, gosto até do meu corpo (que tem muito a ver com gostar da minha cabeça). Não sinto a menor saudade dos 18, 20 anos. David Bowie, meu mestre capricorniano, dizia que envelhecer é maravilhoso porque você finalmente se torna quem sempre deveria ter sido. Palavras mágicas. Ainda tenho as nóias e as questões (mas faz parte do meu “metabolismo”, se eu não as tivesse não seria quem sou, não seria compositora, escritora, enfim.) Na véspera de fazer 40, assisti “Interestellar” (talvez tenha sido a quinta vez). Adoro dar um tilt na cabeça com as possibilidades que o filme oferece. O tempo, o buraco negro, os encontros, o amor. Sou bem sacolejada por essa história. E como disse: preciso dos sacolejos.

Tenho 40 e não sou uma adulta tradicional, nem uma loucona, como eu achava que só existiam dois tipos de quarentões quando eu era novinha. Eu não achava que as pessoas eram equilibradas com 40. Com 50, eu já pensava “Ah cansaram, e agora tá mais equilibrado”. Que absurdo. Tenho meus dias careta, tenho meus dias alucinada, completamente fora da casinha, e há os dias de mescla. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Um pouco de droga, um pouco de salada. Estou viva, consegui até aqui.

Fiz faculdade de letras, desisti, descobri o teatro, descobri o violão, descobri homens, mulheres, amizades, acampei, vi 11 estrelas cadentes na mesma noite, pratiquei lisergia em lugares absurdos de lindos do Brasil, tomei conta de crianças que nem conhecia em viagens de 27 horas de ônibus pra Bahia, perdi coisas, pessoas, quebrei coisas, pessoas. Me sacanearam, fui sacanaeada, tive blog, fotolog, Orkut, comecei a colocar as folhas das agendas, dos diários ali na internet, fiz amizades. Dancei, minha nossa, como eu dancei, aliás, saudade. Passei num teste pra apresentar um programa de tv sobre turismo na América Latina, eu só tinha ido a Disney quando o dólar tava R$ 1, aliás, saudades. Chorei a vida em Machu Picchu, entrevistei o Kiko do Chaves, comi um roedor, comi gafanhoto, pulei do maior bungee jump da América Latina. Comecei a fazer show. Tive trocentas pontadas na cabeça, fiz ressonância magnética, porque quase morri na tomografia quando era nova. Me apaixonei, não se apaixonaram por mim. Se apaixonaram, eu não me apaixonei de volta. Acampei, vi planctons, delirei na Mata Atlântica, descobri o amor, vi o mundo embaixo d’água. Caí de skate mil vezes. As notícias do país se repetiam, as drogas ainda vencem a guerra contra elas, mas opa, coisas mudaram, o Brasil saiu do mapa da fome.

Não sou uma adulta tradicional, nem uma loucona, como eu achava que só existiam dois tipos de quarentões quando eu era novinha

Fiz mais shows, fiz filmes, peças, apareci em América, a novela sobre deportação: eu era uma paraguaia deportada. Risos. Ganhava dinheiro aqui e ali. Ficava dura lá e acolá. Vi meu pai incorporando no terreiro milhões de vezes, vi minha mãe em outra dimensão trocentas vezes. Fui a enterros. Senti o sobrenatural em mim. Tratei corpo, cabeça. Paixão, tesão. Fiz o que deu, fiz o inimaginável, fiz o que pude. Aprendi a cozinhar sinistramente. Vi cobra passar do meu lado dentro de cachoeira, salvei vidas, acabei com outras. Cometi gafes, vivi constragimentos que me fazem quebrar copos até hoje, enquanto lavo e lembro. Fui aplaudida, fui enaltecida, pulei em plateias. Senti cheiros que não esqueço. De gente, de viagens, de bebês. Dei caronas, me perdi, falésias, fogueiras, beijos na boca. Bocas. Tatuagens, brigas, restaurantes. Li pouco, escrevi pouco, mas o desejo de mais é latente. Fiz pactos, rituais, vivi o amor depois do amor. Chorei de gargalhar, conheci outros países, perdi a fala com músicas, me arrepiei com peças, chorei com filmes.

No resumo do resumo, tirando o bullying, os tapas na cara, os ladrões, os vampiros, os horrores (eles existiram e não falar deles é uma escolha consciente, LIVE AND LET DIE), na última instância, analisando minha vida como se eu estivesse em outra dimensão, à la “Interestellar”, vendo assim de fora, essa grande maquete: esses 40 anos foram curiosos. Não uso a palavra “bom”, porque nem acredito nisso. Quarenta anos de curiosidade, neuras e glórias. Não sucumbi e não fui engolida. Estou em cima da prancha ainda, já caí, tomei uns caldos violentos, mas consegui me recuperar, ainda estou conseguindo dar braçadas e pernadas. Nem sempre o mar tá bom, mas a gente vai levando.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação