Dias de domingo
Antologia reúne 15 autores brasileiros contemporâneos que escrevem sobre memórias e sentimentos despertados pelo primeiro dia da semana
Um encontro, um almoço em família ou simplesmente o ócio, “com sua inescapável vista para o vazio”. Foi pensando nas imagens que o domingo pode evocar, que a Editora José Olympio convidou 15 nomes da literatura brasileira contemporânea para escrever histórias inspiradas pelos sentimentos que o primeiro dia da semana desperta em “Dias de Domingo”.
A coletânea de contos celebra os 90 anos da editora, hoje parte do grupo Record, que reuniu alguns dos principais autores da literatura brasileira — e à qual Carlos Drummond de Andrade se referia apenas como “a casa”. Integram o time Sérgio Rodrigues, Noemi Jaffe, Marcelo Ferroni, Cíntia Moscovitch, Giovana Madalosso, Carlos Eduardo Pereira, Adriana Lunardi, Maria Ribeiro, Juliana Leite, Veronica Stigger, Marcelo Maluf, Julia Wähmann, Maurício de Almeida, Tobias Carvalho e Adriana Lisboa.
“A intenção era fazer com que os autores se lembrassem de um domingo cotidiano, anterior à pandemia. Pensar o domingo, esse dia neutro, esse dia nonada, essa página em branco, esse tédio, como uma motivação maior”, diz na apresentação a organizadora do volume, a agente literária Eugênia Ribas-Vieira.
Cada um ao seu estilo, os autores guiam o leitor por almoços em família com maionese caseira, histórias de um relacionamento aberto em que a única condição é ser sempre a parceira do domingo, memórias de um país que cultuava um ídolo chamado Ayrton Senna ou mesmo um reencontro com um pai marcado pelas memórias de uma vida e a saudade, como no conto da curitibana Giovana Madalosso que você lê a seguir.
NOSSOS OSSOS
Giovana Madalosso
Seus ossos me comovem. É como se um vento tivesse batido na sua mão e empurrado todos os dedos em direção ao mindinho. Uma mão como um lenço ao vento, se despedindo da vida. Foi assim com a sua mãe, está sendo assim com você, provavelmente será assim comigo. Quando nossos ossos se vergam é porque alguma coisa já se vergou por dentro.
Coloco a mala no chão e te dou um abraço. Que saudade, pai. Meus pés que rodaram o mundo encontram os seus, que nunca saíram daqui. Estão entrecruzados no chão de lajota, minhas sapatilhas apontando para a cozinha, seus chinelos para a rua. Penso na vontade que você deve estar sentindo de sair pela porta e percorrer o caminho que nunca deixou de percorrer, um único dia, desde antes de eu nascer. Lembro-me das vezes em que me levava junto. Acordávamos antes do sol, o dia nascendo pelos vitrais coloridos do Mercado Municipal, você carregando os tomates que virariam molho, eu ganhando um pirulito como compensação pelo meu companheirismo. Você segue se levantando cedo. Vejo pela casa já arrumada às oito da manhã, o café tomado, sobre a toalha de flores marrons só a garrafa térmica e algumas migalhas de pão.
Você me leva até o quarto que um dia foi meu com aquela formalidade que levava os clientes até a mesa, as costas se curvando um pouco ao apresentar o espaço. As paredes não sabem que fui embora. Seguem segurando com galhardia os pregos atrás de quadros que ninguém mais olha: um Monte Fuji bordado pela minha nona, um pôster desbotado de bailarinas do Degas.
Só fui me tocar que era Dia dos Pais e te dar um abraço lá pelas seis da tarde, quando divisei sobre as mesas vazias uma embalagem de presente rasgada, acenando para mim como um lembrete
Tomo um banho e vou te encontrar na cozinha, onde você já começa a preparar o almoço, as mãos inquietas para fazer alguma coisa. É estranho te ver cortando uma única cebola, acendendo uma única boca de fogão. Mais estranho ainda é ver você cozinhando só para mim. Casa de ferreiro, minha mãe sempre falava, enquanto abríamos as quentinhas trazidas do restaurante, para depois dormirmos exaustos no sofá. Lembro de um Dia dos Pais em que você saiu para o mercado antes de eu acordar e só fui ver você já na frente das fritadeiras, suas mãos de polvo soltando sei lá quantos pratos, o pescoço vermelho de calor e pressa, enquanto minha mãe gritava os pedidos na boqueta. Eu devia ter uns quinze anos, estava começando como garçonete, nunca tinha pegado o salão tão cheio, e posso me ver gritando com você, vai rápido seu idiota que os clientes estão reclamando. Só fui me tocar que era Dia dos Pais e te dar um abraço lá pelas seis da tarde, quando divisei sobre as mesas vazias uma embalagem de presente rasgada, acenando para mim como um lembrete. Não me senti culpada. Era assim no Dia dos Pais, das Mães, das Crianças. Nos sábados, domingos e até nas terças em que alguém resolvia fazer uma festa e assistíamos à vida passar na frente do balcão.
Não posso dizer que não nos divertíamos, mas à nossa maneira. Lembra da Cantina do Ciaccio?, penso mas não verbalizo, vendo você entretido com alguma coisa no armário. Usávamos a nossa única noite de folga para visitar outros restaurantes. Não sei se íamos para curtir — vocês nunca foram de beber e estavam sempre exaustos demais para cavarem prazeres —, mas gostávamos de roubar cardápios para comparar os preços depois. Eu e você sempre vigiando o garçom, a mãe tentando enfiar o menu na bolsa. Como ríamos quando eram grandes demais, dos malabarismos que ela precisava fazer para embolsar folhas altas e duras ou tábuas medievais.
Ainda tem muita saudade dela?, agora pergunto em voz alta, minhas palavras se sobrepondo ao borbulhar da panela. Você me olha de um jeito que diz tudo. E não tem visto ninguém? Às vezes teu tio aparece, você diz, e já posso imaginar os dois irmãos sentados na sala, assistindo à tevê sem assistir, a tela um subterfúgio para a dificuldade de entabular uma conversa. Até isso é preciso aprender: a conversar. E na pobreza em que você foi criado, no parreiral devassado pelas geadas, nada se jogava fora, quanto mais conversa. Talvez o problema da nossa família nem seja a falta de ânimo para cavar prazeres, mas a completa ignorância do que são e de onde encontrá-los, como se fossem presas que certos cães aprendem a farejar desde pequenos com suas matilhas e que não podem ser encontradas por um leigo depois que seu faro se consolida. Tanto que também não sou boa nessa prática, o pouco que sei aprendi depois de velha, em outras matilhas.
Pelo menos comer, comemos bem. O prazer permitido, escondido dentro da desculpa da subsistência, cozinhado discretamente por gerações de mulheres que traficavam dentro de raviólis a sua carta de insurreição contra a dureza. Você aprendeu bem as receitas. Antes de servir, limpa a borda do prato — jamais se serve uma borda suja —, depois coloca a massa à minha frente. Dou uma garfada atrás da outra. Elogio de boca cheia, regredindo no tempo através das papilas. Você dá risada. Sei que adora me ver desse jeito. Sugiro que depois do almoço a gente dê um passeio. Você diz que não pode, tem que arrumar a cozinha. Olho para as panelas que lavei enquanto você cozinhava, para a bancada quase limpa. Insisto: o dia está lindo.
Pergunto se topa dividir uma cerveja. Você é gentil demais para dizer que não, especialmente a uma mulher, mesmo sendo essa mulher a sua filha
Saímos pelo bairro onde nasci. Uma periferia de pequenos comércios: Armarinho Roma, Sapataria Veneza, Mercearia Dolce Vitta. Há uma tristeza naquelas fachadas simplórias, talvez porque eu saiba que a maioria de seus donos nunca pisou no lugar ao qual presta homenagem. Na frente do cemitério, você faz o sinal da cruz, não sei se por hábito ou respeito aos nossos falecidos. Não quer ver tua mãe?, você pergunta apontando para o portão de ferro e, depois de pensar nela com saudade, quase dou risada: só você pra sugerir um programa desses num domingo. Seguimos caminhando naquela aridez de Brasil largado à própria sorte: sem praças, bancos, árvores. Aponto para um bar de esquina. É um lugar simples, só mesas e cadeiras amarelas de plástico e uma caixa de som na calçada. Mesmo assim parece um oásis. Vamos nos aproximando. Você cumprimenta com um oi breve os clientes nas mesas. É gente do bairro, todo mundo se conhece. Percebo a surpresa deles ao ver você pegando uma mesa e me dou conta de que talvez seja a primeira vez que você se senta num boteco. Pergunto se topa dividir uma cerveja. Você é gentil demais para dizer que não, especialmente a uma mulher, mesmo sendo essa mulher a sua filha, e logo os copos pousam à nossa frente.
Ficamos bicando a cerveja em silêncio. Você cruza e descruza as pernas, procura um lugar para enfiar as mãos. Talvez seja mais fácil trabalhar sem parar do que encarar o ócio com sua inescapável vista para o vazio. Encho mais um copo para mim e para você. Um pouco depois, percebo sua mão batendo na mesa, os ossos tortos em concha marcando o ritmo da música. Também vejo seus lábios murmurando um pedaço da letra. Presto atenção no que sai da caixa. É um sucesso que tocou durante anos em todo e qualquer evento que faziam no restaurante. Você percebe que estou te olhando e para de mexer a mão e a boca. Eu disfarço um sorriso.
- Dias de Domingo
- Vários autores
- José Olympio
- 176 páginas
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