Sonetos de Amor e Sacanagem
Em novo livro de poesia, Gregório Duvivier usa o clássico para retratar o contemporâneo e o formal como estrada para desfilar sua irreverência
Quatro estrofes, 14 versos. Dois quartetos seguidos de dois tercetos. Cada linha com dez sílabas poéticas, daquelas que levam em consideração não a divisão tradicional, mas a sonoridade das palavras. Se você se lembra dos tempos de escola, vai recordar a estrutura fixa do soneto. Sim, aquele do célebre “O amor é fogo que arde sem se ver”, de Camões, do “De tudo ao meu amor serei atento”, de Vinicius de Moraes, de “Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida”, de Florbela Espanca.
Agora, é a vez de o ator, humorista e escritor Gregório Duvivier, um dos idealizadores do Porta dos Fundos, tomar o formato para si, sem deixar de lado suas tradicionais irreverência e graça características. Em “Sonetos de Amor e Sacanagem” (Companhia das Letras, 2021), o apresentador do programa Greg News vai, ao longo de 48 poemas, atirando a esmo em temas como política e paternidade, assim como o vazio cotidiano e o aspecto democrático do peido.
Esta não é a primeira incursão de Gregório pela poesia — antes, vieram “A Partir de Amanhã Eu Juro que a Vida Vai Ser Agora” (7 Letras, 2011) e “Ligue os Pontos” (Companhia das Letras, 2013) — e nem pelos sonetos, mas é uma que chama a atenção pela constante mistura da forma rígida com o estilo informal. Ao falar também sobre amor e sexo, dois assuntos que estão no cerne da obra, o humorista acaba recorrendo ao clássico para retratar o contemporâneo, numa sinfonia divertida e viciante que por vezes soa como a própria vida.
Soneto pra Sá de Miranda
Tenho pena de quem é meu amigo,
pois deve desejar a minha morte.
Nasci graças a deus com uma sorte:
a de não ter que conviver comigo.
Garantiram: não tem nenhum perigo.
Não há chato, no mundo, do meu porte.
Jamais serei de mim o meu consorte.
Só a vocês concedo esse castigo.
Os segundos que chegam logo após
ouvir no gravador a minha voz
dão vontade de dar à vida um fim.
Se eu fosse por acaso dessa gente
que convive comigo diariamente
ou me matava ou bem matava a mim.
Tenho pena de quem é meu amigo,/
pois deve desejar a minha morte./
Nasci graças a deus com uma sorte:/
a de não ter que conviver comigo
Soneto fático
Repare nas pessoas conversando:
não é um bate-papo, é uma luta.
Todos querem pra si o olhar do bando.
Ninguém se entende nem sequer se escuta.
Pode até parecer civilizado,
mas se olhar com cuidado e lucidez
vai perceber que quem está calado
só espera chegar a sua vez.
Fale merda que alguém no mesmo instante
dirá uma merda mais irrelevante
que não tem nada a ver com a merda acima.
Falar só serve pra fazer barulho.
Esse poema, mesmo, é um entulho.
Não muda nada — mas ao menos rima.
Faz um beque, relaxa, se aconchega./
Maconha é o melhor tipo de manteiga/
pra besuntar o pão de cada dia
Soneto da maconha
O silêncio da fera ela garante.
Uma tarde sem sal, ela tempera.
Não há no mundo todo igual amante.
A maconha gratina a sua espera.
Tudo fica melhor e mais crocante
se puder dar um tapa na pantera.
Quando a vida precisa de um levante,
refoga essa existência rastaquera.
A cannabis opera algum milagre.
Traz o vinho de volta no vinagre,
até água transforma em iguaria.
Faz um beque, relaxa, se aconchega.
Maconha é o melhor tipo de manteiga
pra besuntar o pão de cada dia.
- Sonetos de Amor e Sacanagem
- Gregório Duvivier
- Companhia das Letras
- 112 páginas
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