Bianca Santana
Ocupação Sueli Carneiro
Ativismo e intelectualidade são também energia vital para suportar — e resistir. Vivas a Sueli Carneiro, que abriu caminhos para que algo esteja acontecendo, apesar da incerteza dos dias
“Tia, eu queria ter o cabelo assim, igual ao seu.” A menina pretinha, de cabelo crespo bem amarrado, apontou meu black ao recolher os chicletes pendurados no retrovisor. Esperávamos, eu e Sueli Carneiro, que ela fosse insistir para que comprássemos o doce. Mas não. Ela disse que queria ter um black power como o meu. “Está realmente acontecendo algo, Bianca. Imagine se uma menina negra da sua geração, que sonhava com os cabelos lisos e loiros, desejaria um cabelo armado? Quando aparece assim, na rua, no farol, é porque tem algo acontecendo de verdade”. Eram quase 15h do dia 18 de agosto e estávamos paradas na Avenida Brasil, a caminho do Itaú Cultural, onde visitaríamos a montagem da Ocupação Sueli Carneiro.
Entrar com a homenageada no prédio da Avenida Paulista e dar de cara com uma espécie de tapume que estampava seu sorriso em uma fotografia enorme, informando que dez dias depois seria inaugurada a exposição, foi daqueles momentos-sínteses em que só cabe agradecer. Cena final de novela, pra gente dramática como eu — e a homenageada. Quando tudo se conecta, os sinos tocam e a vida parece fazer sentido. Sueli Carneiro ficou paradinha encarando o espelho-foto. Conversou com o pai, José Horácio. E eu testemunhei.
O texto poderia acabar aqui.
Imagine se uma menina negra da sua geração, que sonhava com cabelos lisos e loiros, desejaria um cabelo armado? Quando aparece assim, na rua, é porque tem algo acontecendo
Vitor Narumi nos acolheu na recepção, com seus cabelos coloridos, e cuidou para que Ana de Fátima Sousa, nossa querida Aninha, gerente de comunicação do Itaú Cultural, soubesse que estávamos ali. Que difícil não abraçar a doçura de mulher com quem trabalhei no último ano. Pouco depois, Pamela Rocha Camargo, Karine Arruda e Fábio Marotta se materializaram na nossa frente. Faltavam Icaro Mello e Tânia Rodrigues para completar o time de pesquisa-curadoria-produção mais maravilhoso deste país. Bel Xavier, que assinou o espaço expográfico, com quem tanto aprendi, também não estava nesse dia, mas pudemos nos encontrar no lançamento, dia 28 de agosto, junto com Luanda e Natalia, minhas parceiras de Casa Sueli Carneiro. Eu precisaria citar muitas e muitas mais pessoas em agradecimento, mas para que o texto seja publicado, sugiro que vocês espiem a ficha técnica do site da Ocupação Sueli Carneiro. Um salve especial ao Baba Diba de Iyemonja que nos orientou em como honrar os deuses em vez de enfurecê-los.
Adentrar o círculo de ferro e imaginar as plantas sagradas que formariam um corredor logo na entrada não chegou perto da sensação de receber o axé, o cheiro e o frescor quando cada vaso foi de fato preenchido por espadas, pereguns, antúrios, samambaias. E mesmo sem nenhuma fotografia, jornal ou escultura disponível, foi muito emocionante observar Sueli Carneiro sob a árvore de escamas brancas. A griô debaixo do baobá, dizendo que se sentia sob o àlà de Oxalá. Paz. Proteção. Força. Ainda mais tangíveis quando, na saída, vimos a ferramenta para Ogum forjada especialmente para a Ocupação. Não deixe de prestar atenção nela se for à Paulista 149 até o dia 31 de outubro. A bigorna envolta por contas verde-água, com as espadas, ferramentas e até uma flecha apontando para o alto, te dirão mais sobre Sueli Carneiro que as inúmeras fotografias, documentos e vídeos cuidadosamente curados. Ativismo e intelectualidade que são também energia vital para suportar — e resistir. Vivas a Sueli Carneiro, a que abriu caminhos para que algo esteja acontecendo, de verdade, apesar da incerteza dos dias.
“Saudações a quem tem coragem”, Sueli Carneiro.
Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos
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