Bianca Santana
O jornalismo que a Folha quer preservar
Não poderia deixar de celebrar a carta de 186 jornalistas, preocupadas e preocupados com a publicação de textos racistas no jornal
Amo revista. Principalmente porque gosto de ter tempo para ler, pensar e sentir antes de escrever. Mas, às vezes, como acontece agora, o texto perde força porque o debate já esfriou. Ainda assim, não poderia deixar de celebrar a carta de 186 jornalistas, preocupadas e preocupados com a publicação de textos racistas no jornal, à direção da Folha de S.Paulo. Nem de pontuar como anacrônica – além de autoritária – a resposta do diretor do jornal. Muito menos perguntar ao Conselho Editorial, que até agora não se pronunciou, se eles chegaram a receber a carta endereçada também a eles.
Não sei se o diretor de redação acompanhou, mas ano passado, a Folha convidou “13 integrantes de grupos sub-representados no jornalismo profissional praticado no Brasil” para gravar depoimentos em vídeos, depois transcritos para páginas impressas e digitais do jornal. A série “E Eu? – O Jornalismo Precisa me Ouvir” foi parte da comemoração de 100 anos da Folha.
Eu, membro “de grupos sub-representados no jornalismo profissional praticado no Brasil” , fui uma das convidadas a falar sobre o que o jornalismo plural que consagrou a Folha ignorara nos últimos 100 anos. Perspectiva negra, de mulher, de periferia, das camadas populares, da classe trabalhadora, sabe? Dessa gente que não é gente suficiente para o jornalismo plural.
Fui convidada a falar sobre o que o jornalismo que consagrou a Folha ignorara nos últimos 100 anos. Perspectiva negra, de mulher, de periferia, dessa gente que não é gente suficiente para o jornalismo plural
Pois bem. Fui, do meu lugar recortado de sub-representação — acho que agora chamam de identitário, mesmo que o verbete não conste no Manual de Redação da Folha — contar para os super-representados seres humanos universais que há informação relevante invisível ao jornalismo crítico, apartidário, independente e pluralista praticado pela Folha. Mesmo que um princípio editorial do jornal seja “priorizar temas que, por afetarem a vida da coletividade ou de parcelas expressivas da população, sejam considerados de interesse público”.
Como a própria Folha convidou, nessa de celebrar 100 anos, parecia que queriam olhar para si, avaliar, continuar com o que é bom e corrigir os problemas. Mas talvez não tenham combinado com a direção que, pelo visto, quer manter os princípios defendidos e praticados nos últimos 100 anos. Seria bom que considerassem o texto do ombudsman do último dia 22, que lembrou como a Folha de depois das Diretas não é bem a mesma de antes da década de 1980.
Além de concordar com o ombudsman que a Folha tem uns tantos nós para desatar (em especial com o que nomeia diversidade, pluralidade e também com o racismo), fico curiosa sobre o conselho editorial. Deixo aqui perguntas diretas aos conselheiros e conselheiras da Folha: vocês leram a carta dos 186 jornalistas publicada na semana passada? Viram os tais vídeos de grupos sub-representados no ano passado? Também querem manter o mesmíssimo jornalismo “que consagrou a Folha nos últimos 100 anos”, com tentativa de inviabilização da política de cotas raciais, com “ditabranda”, com tudo? A ideia é deixar morrer o assunto, alargando espaço para a naturalização de mais textos racistas?
Às jornalistas e aos jornalistas que assinaram a carta de questionamento ao jornal, em defesa de um jornalismo que busque a verdade e respeite a dignidade humana: todo o meu respeito e solidariedade. Vocês me fizeram ter orgulho de ser jornalista. Subscrevo as manifestações de apoio das comissões de jornalistas pela igualdade racial, e também do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e da FENAJ. Como costuma dizer Sueli Carneiro: saudações a quem tem coragem.
Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos
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