Disse não para o seu filho hoje?
Crianças amadurecem desafiando as autoridades. Dar limites é uma maneira de ajudá-las a crescer
De quando os baby boomers eram crianças, educadas sob o imperativo da obediência, à era dos millennials, que ganharam fama de insubordinados, muita coisa mudou na criação dos filhos. Inclusive no jeito como usamos o “não” para educá-los.
A interferência das telas, a falta de intimidade e, mais recentemente, a suspensão de momentos ao ar livre e da rotina das famílias por prazo indefinido são alguns dos fatores que alteraram as regras do jogo quando o assunto é delinear limites. E daí emerge o impasse de chegar a um caminho que não seja nem tão rígido, nem tão permissivo.
Em um cenário inédito e particularmente delicado como este, o segredo, segundo o pediatra Daniel Becker, é ter uma rotina bem estabelecida. E o momento também pede certa flexibilização de combinados mais restritivos, mais brincadeiras em família e movimentação dentro de casa para as crianças.
Mil birras virão em sua direção, ainda que haja maior permissividade. Porque a tensão do entorno pode atingir também as crianças. “Para elas, acolhimento total desses momentos difíceis. Crianças expressam as emoções que as afligem, ansiedade, medo, sob forma de birra. E precisamos entender que por trás disso existe um sofrimento psíquico”, diz Becker. “Tem que distrair com a fantasia e a brincadeira, mas sempre acolher completamente os sentimentos dessa criança”.
A seguir, a Gama ouviu especialistas e reuniu alguns caminhos para estabelecer limites, dentro e fora da quarentena.
A tentação do sim
Ceder às vontades dos mais novos costuma ser uma opção mais atraente, sobretudo pela falta de convivência dos pais com a criança, exaustão ou peso na consciência — as duas últimas merecendo agora atenção redobrada, já que podem se agravar no confinamento. Enquanto isso, o “não”, comprovadamente importante na criação, passa a ser menos usado.
“Me sinto culpada porque não tenho tempo [para a criança]. E aí autorizo coisas porque deixo de desenvolver uma intimidade com meu filho”, exemplifica a educadora parental Lua Barros. “Uma criança precisa ouvir o ‘não’, ser frustrada, entender processos e conquistas. E acho que os pais andam meio sem tempo, principalmente em grandes centros urbanos, delegando essa função que é exaustiva mas necessária.”
Uma criança precisa ouvir o ‘não’, ser frustrada, entender processos e conquistas
Dizer muito “sim” pode momentaneamente ser mais fácil, mas priva crianças de desenvolver a habilidade de negociar, improvisar com os recursos que têm disponíveis e enfrentar desapontamentos. “A vida é uma sucessão de fracassos e perdas, e também de êxitos e alegrias. Uns não existem sem os outros. Se você aprende a fazer lutos dos insucessos e das perdas quando é criança, elaborando em cima de temas mais simples, como uma nota baixa, aprende a lidar com algo essencial na vida: os desafios, as dificuldades e as frustrações”, afirma o pediatra Daniel Becker.
Sem a alternativa do ar livre, porém, vale maneirar nos combinados mais rígidos, segundo Becker .”É hora de mais permissividade, mas num bom sentido. Deixar dormir um pouco mais tarde, usar um pouco mais de televisão, do celular, é natural numa situação como essa. Tem que se perdoar, ter tolerância consigo mesmo e com as crianças”, explica.
“A dica é fazer atividades juntos que sejam legais para todo mundo: brincadeiras em família e movimentação para botar essas crianças para gastar energia. É a forma mais legal de passar o tempo e manter a saúde física e mental de todo mundo.”
Sem espaço para negociação
Nem sempre há espaço para negociar em interações entre pais e filhos. Assim como nem sempre vale a pena esperar que um filho entenda as razões por trás de uma resposta negativa. A expectativa de que uma criança aja de maneira racional ou compreenda uma argumentação lógica pode ser frustrante.
Como mostram o psiquiatra americano Daniel Segel e psicoterapeuta Tina Bryson em “O Cérebro da Criança” (Editora nVersos), questões relacionadas ao desenvolvimento físico dos mais novos podem fazer com que eles se inundem de grandes emoções sem muito equilíbrio lógico, e fiquem irritados com algo ridículo. Nesses casos, tentar debater não é eficaz e ganhar pela lógica talvez seja impossível. “Você pode oferecer colo, olhar em seus olhos, reconhecer, legitimar a frustração da criança. Mas se manter firme no seu papel, que não é o de agradar, mas de conduzir”, sugere Lua Barros.
A negociação vem mais tarde, com o amadurecimento. “Dos três para os quatro anos de idade é quando a criança começa a ter um pouco mais de maturidade e seu córtex controla um pouco mais as emoções. E aí o diálogo sempre faz bem: você pode conversar, acolher as emoções e as frustrações mas manter os limites do que está propondo relativamente firmes, sem ser rígido”, diz Daniel Becker.
A fase do “ainda não”
Durante a primeira infância, sobretudo nos três primeiros anos de vida, o uso da palavra “não” é uma estratégia menos eficaz, afirma a psicóloga Rosely Sayão. “Uma criança dessa idade usa mais a palavra ‘não’ do que os pais. ‘Hora de tomar banho!’ ‘Não.’ ‘Hora de comer.’ ‘Não’. Isso não quer dizer uma negativa, mas uma afirmação: ‘Eu sou eu e quero algo diferente de você'”, explica Rosely.
Comandos como “não pegue”, “não faça”, podem dar lugar a alternativas como desviar o foco do problema, concentrar a atenção da criança em outra coisa e fazê-la esquecer o que é, afinal, perigoso ou proibido. Isso demanda paciência e alguma criatividade: para que em vez de colocar o dedo na tomada, ela ache mais atraente observar um pássaro ou o caminhão de lixo na rua.
Também é bom lembrar que quase nenhum não é definitivo nessa fase, segundo a psicóloga. A maioria deles costuma ser “ainda não”. E fazer entender que a decisão é temporária pode ajudar a tornar o pronunciamento dos pais menos doloroso.
Os motivos por trás do não
Usar a palavra “não” com inteligência e equilíbrio requer escuta e ação. “Precisamos ouvir mais o que os filhos dizem. No geral a gente só tem disposição para falar, e chama de diálogo o que é na verdade falação. Mas se a gente ouve a criança, ela dá sinais”, explica Rosely.
Para Rosely, a palavra “não” deve vir acompanhada de uma atitude que dê o real sentido para a criança. Do contrário, corre o risco de ter seu significado esvaziado — sobretudo se for usada em excesso. “Eu costumo dizer que criança não precisa de limite, mas de adulto. É o adulto que determina limite: não adianta dizer para a criança ‘não suba a escada’. Isso não é um limite. O limite é impedir que a criança suba a escada.”
Para Lua Barros, é importante que pais e mães se observem e observem seus filhos. Às vezes nossas projeções e expectativas sobre as crianças dizem mais de nós do que delas. “É importante que a gente se questione: por que estou dizendo esse não? É para meu benefício, meu conforto ou para o conforto da criança? Por que eu não quero que meu filho se suje, por exemplo?”.