Filhos: não existe palmada pedagógica — Gama Revista
Filhos

Não existe palmada pedagógica

A prática ainda é comum no Brasil e no mundo, apesar de ser proibida por lei e de uma série de estudos mostrarem seus efeitos nocivos para as crianças

Betina Neves 10 de Dezembro de 2021
Getty Images

É bem provável que, entre as pessoas próximas da sua convivência, muitas tenham apanhado na infância: dar umas palmadas nas crianças há séculos é banalizado e aceito socialmente. Na última década, porém, cada vez mais pais, profissionais e instuições têm se dedicado a mostrar que a prática, independentemente da intensidade, é sim uma violência, e seus efeitos podem reverberar negativamente em vários aspectos do desenvolvimento infantil. Esse movimento vem amparado por leis contra o castigo físico presentes em cada vez mais países e por uma série de pesquisas que comprovam que palmada não serve para educar.

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Essa é a proposta, por exemplo, da Rede Não Bata, Eduque, que atua para o fim da prática no Brasil com cursos e formações em Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), conselhos tutelares, unidades básicas de saúde e até no sistema prisional. “Em 2006, quando começamos, achavam nossa proposta louca, eu ouvia muito que ‘todo mundo faz isso e pronto’. Hoje, temos um cenário muito mais favorável para discutir a questão”, conta a assistente social Marcia Oliveira, coordenadora do programa.

A mudança nas legislações mundo afora atesta essa tomada de consciência: há 20 anos, só oito países tinham algum tipo de lei contra o castigo físico – hoje, são mais de 60, incluindo o Brasil.

As estatísticas, porém, mostram que o caminho ainda é longo para uma mudança cultural mais efetiva. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Fundação José Luiz Egydio Setúbal aponta o registro de 129 mil casos entre 2019 e o 1º semestre de 2021, em 12 estados brasileiros. Meninas são as principais vítimas de crimes não letais. A pesquisa mostra que 35,1% dos registros de vítimas até quatro anos são de maus-tratos.

Outros estudos mostram que cerca de 50% das crianças de 3 a 4 anos de idade na América do Sul ainda levem palmadas, sejam feridas com objetos ou expostas a outras formas de castigo corporal. Nos EUA, uma pesquisa pública de 2018 revelou que 66% dos americanos acham que uma boa surra às vezes é necessária para disciplinar os filhos.

Não está tudo bem

Oliveira foi uma das pessoas que lutaram pela aprovação da Lei Menino Bernardo, de 2014, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente e estabeleceu o direito de os mais jovens serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel e degradante – para ela, um marco histórico e ético nessa luta. A legislação, vale dizer, tem caráter pedagógico e não penal.

O nome da lei refere-se ao gaúcho Bernardo Boldrini, assassinado pelo pai e pela madrasta daquele ano. O crime lembra outros casos como a da morte de Henry Borel, em março de 2021 – mensagens trocadas entre a mãe e a babá do menino, interceptadas pela polícia na época, apontaram para reiterados episódios de violência contra a criança, que aparecia com hematomas e marcas no corpo.

Falamos muito de violência contra idosos, mulheres e animais – por que continuamos fazendo isso com as crianças?

Diante de situações brutais assim, pode-se pensar que isso sim é violência, e não aquela palmada rápida que você possivelmente levou por colocar a mão onde não devia. Porém, a assistente social Marcia Oliveira afirma que não existe “palmódromo” para medir a intensidade de um castigo físico. “Não é uma questão de grau, mas o ato em si contra um outro ser que é mais frágil. Falamos muito de violência contra idosos, mulheres e animais – por que continuamos fazendo isso com as crianças?”

Além disso, ela lembra que a prática ensina a violência física como um caminho para a resolução de conflitos. “Eu não aceito que meu companheiro me dê um tapa porque eu queimei o arroz, por exemplo, ou que um colega de trabalho me bata porque eu não cumpri uma tarefa.” Nesse aspecto, é notável, por exemplo, um estudo feito no Canadá que mostra que, em países que proibiram os pais de bater em seus filhos, há menos violência juvenil.

“Bater como tentativa de educar pode ser extremamente contraditório. Se o filho bate no irmão e o pai o repreende com o tapa, isso é totalmente incoerente. Se a gente não quer cidadãos que reajam com violência no mundo, a gente não pode educar crianças com violência”, diz a neuropsicóloga especialista em comportamento infantil Deborah Moss, que é mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela USP. “É uma questão de evolução. É bom lembrar que, há não muito tempo, professores podiam dar castigos físicos na escola. Hoje, sabemos que bater não traz nada de bom.”

De fato, para quem ainda está repetindo que “apanhou e ficou bem”, a ciência já atesta os efeitos nocivos dos castigos corporais. Alguns estudos revelam que crianças que apanham tendem a ter dificuldades acadêmicas e sofrer de problemas de saúde mental, incluindo depressão e ansiedade, além de apresentar mais problemas de comportamento, como agressão à família e aos colegas. Outros mostram que bater pode interferir no desenvolvimento saudável do cérebro devido aos altos níveis de estresse.

Não existe palmada pedagógica: toda vez que se bate em uma criança, se está violando os direitos e o corpo dela e causando danos

“Não existe palmada pedagógica: toda vez que se bate em uma criança, se está violando os direitos e o corpo dela e causando danos. E, dependendo do contexto dessa violência, que às vezes é diária, isso pode ter repercussão pela vida inteira”, diz a assistente social Marcia Oliveira.

Outras formas de educar

A educadora parental Lua Barros, autora do livro “Eu Não Nasci Mãe” (Editora Nacional, 2020), explica que, quando a criança apanha, ela não deixa de amar os pais, mas pode deixar de amar a si mesma. “E essa falta de amor próprio tem implicações muito profundas, que podem se manifestar em várias situações da vida adulta, como em relacionamentos tóxicos.”

Barros é expoente da chamada parentalidade positiva, conceito desenvolvido pela psicóloga e educadora norte-americana Jane Nelsen a partir das teorias dos psiquiatras austríacos Alfred Adler e Rudolf Dreikurs. Essa linha rejeita a punição e propõe um caminho do meio entre o autoritarismo e a permissividade na criação das crianças, com base na comunicação, valorização dos sentimentos e respeito mútuo.

“A gente precisa repensar nosso conceito de respeito, que ainda é muito calcado no medo. Respeito é, na verdade, uma conquista, e precisa ser construído junto com a criança e não imposto. Ela precisa ser vista, ouvida e levada em consideração como um indivíduo.”

A educadora explica que essa ideia é, muitas vezes, um convite incômodo aos pais. “Precisamos entender que, como pais, estamos sim num lugar hierárquico diferente das crianças, mas isso não quer dizer que podemos tudo em relação a elas. Somos diferentes, mas temos o mesmo valor.”

As especialistas consultadas para esta reportagem lembram que bater muitas vezes é uma reação irracional dos pais em momentos em que outros recursos se esgotaram, e que costuma causar culpa, tristeza e sensação de fracasso. Por isso, trabalhar a saúde mental dos adultos é parte importante desse processo de mudança de cultura – uma pesquisa recente verificou que, independentemente do nível socioeconômico, as mães relatam dificuldades em regular suas emoções e comportamentos para lidar com as crianças. As mães, inclusive, foram as que mais sofreram com a sobrecarga de afazeres durante a pandemia.

Estamos sim num lugar hierárquico diferente da criança, mas isso não quer dizer que podemos tudo em relação a elas. Temos o mesmo valor

“Muitos pais não conseguem lidar com as próprias frustrações e não têm um repertório emocional próprio para lidar com os conflitos com os filhos”, conta a educadora parental Lua Barros. “Mas também vejo que, dentro do modelo acelerado de vida que temos hoje, as pessoas não estão nem parando para respirar. E isso é essencial para construir relações não violentas”.

Para a assistente social Marcia Oliveira, as famílias carecem de mais apoio nesse processo de cuidado e proteção. “Precisamos de mais políticas públicas de serviços, assistência, educação e saúde para trazer recursos e informações sobre como fazer diferente.”

Dicas para refletir

  • Autoconhecimento e autorreflexão são extremamente importantes para adultos na hora de educar uma criança. Entrar em contato com as próprias questões, assim como revisitar a própria infância, ajuda a entender gatilhos e desafios.
  • Buscar informações, profissionais e até cursos sobre outras formas de educar pode trazer ferramentas para recorrer quando a coisa aperta. Conhecer o que é comum em cada fase do desenvolvimento também ajuda a diminuir o estresse.
  • Contar até dez e respirar fundo parece óbvio, mas muitas vezes é o que salva: a pausa é essencial para sair de padrões de reatividade. Explicar ao filho que precisa se afastar e retomar o assunto depois também vale.
  • Calma, firmeza e gentileza funcionam muito melhor do que gritos, ameaças e xingamentos. Disciplina positiva tem a ver com clareza na comunicação, mesmo na hora de dizer não, e validar o que a criança está sentindo.
  • Construir regras junto com as crianças – e se abrir para testar o jeito que elas propuserem de fazer as coisas – pode gerar mais comprometimento. Escutar a opinião delas e estimulá-las a participar das decisões traz autonomia e autoconfiança.
  • Na adolescência, necessidades e interesses mudam e é necessário se adaptar. Acolhimento, afeto e conversas honestas precisam ser constantes, até para definir limites.
logo Fundação José Luis Egydio Setubal

Este conteúdo é parte de uma série especial sobre violência e maus-tratos contra crianças e adolescentes, produzida com apoio da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, instituição que atua em iniciativas sociais dedicadas à melhoria da qualidade de vida na infância, ao conhecimento científico sobre a saúde infantil e à assistência médica infanto-juvenil.

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