Maria Ribeiro
Rayssa Leal, 13 anos e 203 dias
“Eu gosto de andar de skate mesmo caindo”, disse nossa heroína em uma entrevista de 2014. Eu também, Rayssa. Obrigada por me lembrar
Rayssa Leal. Treze anos e 203 dias. Skatista. Natural de Imperatriz. Do Maranhão do Flávio Dino (e, não, dos Sarney). Do Instagram, e, não da Globo. Do Mario Bros, e, não, do Monteiro Lobato. Da Erundina, e, não, do Jânio Quadros. Da Elza Soares, ainda que disfarçada de pista Mané Garrincha. Do Brasil pós-Brasil.
Rayssa Leal. Treze anos e 203 dias. Da roupa de fada – e não só. Da fantasia de mulher maravilha – e também. Da camiseta azul e do boné – e continua. Skate não é mais de menino. Menino não é mais de menino. Com “x” ou sem, com “e” ou sem, com bola de vôlei, chuteira, sapatilha de balé, com o “a” pra virar menina e desvirar depois – que palavra também é pra fazer manobra.
Rayssa Leal. Treze anos e 203 dias. Do Tik Tok e do cubo mágico. Do aparelho nos dentes e das unhas brasillis. Da vida pela frente – e esse é o título de um livro bonito. Da Califórnia e de Tóquio, do mundo que agora ficou pequeno.
Rayssa Leal. Treze anos e 203 dias. Da medalha de prata que na verdade é ouro. Do ouro do sino de um texto do Rubem Braga – se eu fosse você lia essa crônica agora (isso, claro, entre um e outro vídeo da Rayssa).
Rayssa do Tik Tok e do cubo mágico. Do aparelho nos dentes e das unhas brasillis. Da vida pela frente. Da Califórnia e de Tóquio, do mundo que agora ficou pequeno
Rayssa Leal. Treze anos e 203 dias. Da alegria que eu tinha esquecido e que ela me devolveu. Do prazer de estar comungando – nem que seja por um dia – com todos os outros brasileiros. Eu que não perco essas horas. Será que dura até amanhã? Vitamina efervescente, lança perfume, proporfol. Rayssa Leal. Treze anos e duzentos e três dias. Do feriado de hoje. De um placar doído que agora mudou de lugar. Sete a quanto? Copa de quando? Prescreveu.
Que hoje eu vi um passarinho verde, ou tomei um MD, ou vi meu país apontar pro futuro. Vinte e seis de julho de 2021. Dia em que minha camisa amarela mudou de direção, e pegou carona na flecha imaginária do atacante Paulinho, quando comemorou o golaço contra a Alemanha no último jogo da seleção. “Flecha de Oxóssi, que com uma única flechada salvou o reino da fome”, segundo o Google (e o professor e escritor Luiz Antonio Simas).
Rayssa Leal. Treze anos e 203 dias. Da independência de quem veste a própria medalha (obrigada, protocolo!). Das Olimpíadas de 2021. Quer dizer, de 2020. Não, de 2022. Sim, de 2022. Da rampa do planalto. Do centenário da semana de arte moderna. Dos abraços nas ruas, do carnaval, da vacina pra geral. Das mulheres. Do porvir. Dos doze anos do meu caçula. Dos dezenove do mais velho. Do meu amor deitado na rede que eu vou pendurar na sala.
Porque Rayssa é pombo correio do Moraes Moreira. Frevo Axé do Cezar Mendes. Porta bandeira do tipo Selminha Sorriso.. Essa noite eu não dormi. Foi ano novo aqui em casa. E também Natal, fim da guerra, impeachment, lua azul, perdão barato, missa bonita, redenção de todo e qualquer desencontro. Foi a cura do câncer e o fim da Covid-19. Desse governo. Desse mundo de homens brancos. Juro que ontem/hoje de madrugada eu os vi indo embora por causa de duas brasileiras no Japão (às vezes a gente precisa ir pro Japão, e construir um país na madrugada…). Será que eles estavam dormindo? Os homens maus? Enquanto Rebeca colocava o mundo pra ouvir baile de favela e Rayssa ninava nossos mortos?
“Eu gosto de andar de skate mesmo caindo”, disse nossa heroína em uma entrevista de 2014, acho que pra Trip.
Eu também, Rayssa. Gosto de andar mesmo caindo.
Obrigada por me lembrar.
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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