Quem tem medo dos NFTs? — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Quem tem medo dos NFTs?

É preciso separar o negócio da arte da sua apreciação. Essencialmente, quem ama arte não precisa possuí-la, enquanto quem a possui não necessariamente ama

07 de Abril de 2021

Aquilo que não é, mas é; e aquilo que é, mas não é.

É preciso separar o negócio da arte da sua apreciação. Essencialmente, quem ama arte não precisa possuí-la, enquanto quem a possui não necessariamente ama. São duas coisas bem distintas. A arte não nasceu para ser possuída mas como necessidade de expressão de quem a fez. A arte como investimento existe para dar lastro a liquidez excessiva do mundo capitalista. Esse negócio é uma das práticas mais vulneráveis do mundo. Algo pode valer muito, ou nada. Recheado de obras falsas, ou de procedência questionável, reconhecimentos tardios, e uma constante subjetividade em valorar o artista. Este que, na maioria das vezes, menos vê o dinheiro da especulação em torno de sua obra.

Nas últimas semanas o mundo da arte foi assaltado com o advento de uma nova tecnologia que colocou por terra boa parte dos paradigmas que sustentam este ecossistema: os NFTs (non-fungible tokens).

Os NFTs são uma evolução das criptomoedas que geraram repentinamente uma imensa riqueza sem nenhum lastro na economia real. De 2017 para cá, os bitcoins multiplicaram o seu valor em quase 60 vezes, criando uma nova classe de milionários virtuais, sem que por trás deles houvesse alguma ideia, empresa ou economia real.

O grande montador de cinema Mair Tavares costumava dizer que se você filma doidão, você deve editar doidão e assistir doidão. Essa máxima vale para o dinheiro criado na economia virtual: o que você ganha virtualmente deve ser gasto virtualmente e ostentado virtualmente. É absolutamente racional que essas novas fortunas buscassem um novo lugar para simbolizar-se, assim como todas as outras fortunas do passado o fizeram.

O grande protagonista do século XXI talvez não seja nenhuma pessoa e sim um algoritmo. É disso que estamos falando. Quem rege o que lemos nas redes sociais, com quem nos relacionamos e como seremos classificados neste novo mundo é um critério matemático baseado em vetores que desconhecemos. A escala de valores criados pelos blockchains são ajustáveis por algoritmos que parametrizam o valor das coisas com base em cálculos de oferta e procura indomináveis por mentes humanas. Seria ingênuo pensar que algo tão simbólico e vulnerável como o mercado da arte não seria impactado por essa revolução que impacta a tudo e a todos.

NFTs criam um novo tipo de colecionador de arte, aquele que não dispõe de paredes para tantos trabalhos possíveis de serem adquiridos com o dinheiro especulativo

Além disso, NFTs não são arte mas são o certificado da arte, algo que para o mercado vale mais do que a própria obra. Histórias sobre falsificações popularizam-se pelo mundo, como vemos no documentário “Fake Art: Uma História Real”, do Netflix, e na fascinante história do falsário chinês Chang Dai Chen, que passou a ser reconhecido como o mais espetacular falsificador de pinturas chinesas antigas. Paradoxalmente suas cópias passaram a valer milhões de dólares, até mais do que os originais valiam. A falsificação da arte é algo tão antigo quanto a sua valoração; e a confiabilidade dos NFTs, que usam a tecnologia de blockchain para garantir sua autenticidade e procedência, são a chave para revolucionar o uso da arte como uma moeda.

Claro que a grande parte das obras apresentadas até agora nessa plataforma são irrelevantes. Entretanto, isso não deve desmerecer o potencial transformador dessa tecnologia em reinventar o papel da arte na sociedade contemporânea. É perfeitamente plausível que essa tecnologia seja usada para certificar a origem e o histórico de qualquer obra. Ela também pode criar um novo tipo de colecionador, aquele que não dispõe de paredes para tantos trabalhos possíveis de serem adquiridos com o dinheiro especulativo.

Estes criptoativos possibilitam também que o artista seja remunerado a cada vez que a obra é vendida. Parte dos lucros que antes era mantida somente por galeristas, colecionadores e casas de leilões agora é embutido no algoritmo. Isso permite que exista um percentual de remuneração automática para os criadores das obras, quando negociadas na plataforma virtual.

Outro aspecto interessante é tangibilizar o colecionismo de obras criadas originalmente de forma digital e multimídia. NFTs funcionam para imagens, sons, códigos digitais ou qualquer combinação que possa ter uma representação digital. Mídias que, apesar de serem profusamente criadas por artistas de várias gerações, ainda não encontraram um universo de colecionadores ávidos por as possuírem, exatamente por não existir, até então, uma forma de limitar sua reprodutibilidade de forma confiável. Agora há.

O advento do leilão da Christie’s que, semanas atrás, levantou 69 milhões de dólares pela coleção de 5 mil imagens digitais criadas pelo relativamente pouco conhecido Beeple arrepiou os mais conservadores, pois trouxe à tona um novo artista que rivaliza em valores com nomes de peso como Jeff Koons, Damien Hirst e David Hockney. De repente, artistas contemporâneos viraram a velha guarda de um movimento meio anônimo e não controlado pelas galerias, instituições e a academia. Uma mudança de guarda ou uma nova guarda apresentou-se.

Toda vez que uma tecnologia disruptiva apresenta-se à sociedade, precisamos refletir sobre o seu potencial de transformação, do que nos é tido como sólido e certo. Entender que arte é uma ideia e não um suporte e que pessoas podem colecionar ideias e não átomos tem a potência de desafiar a artistas e criadores a repensar suas práticas. Com certeza, a arte virá com uma resposta altamente criativa a mais esta nova provocação. Este é o seu papel.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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