Fernando Luna
É urgente o amor
Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre o amor nos tempos do coronavírus, bolsonaristas enrustidos, complexo de vira-latas paraguaio e a cura infalível pro medo de fracassar
“É urgente o amor”
Eugénio de Andrade, 1956
Certamente você já esbarrou por aí com o Dwight D. Eisenhower.
Não digo o trigésimo quarto presidente dos Estados Unidos em si. Ele, afinal, morreu há distantes 60 anos. Falo de sua maior contribuição à humanidade.
Obviamente não se trata do desembarque da Normandia, ponto de virada da Segunda Guerra Mundial. Sim, reconheço, o Dia D teve lá sua importância e o Comandante Supremo das Forças Aliadas foi seu principal estrategista.
Mas nada supera a glória da Matriz de Eisenhower.
Hum, talvez você não esteja ligando o nome ao PowerPoint.
São aqueles quatro quadradinhos dedicados a organizar melhor as tarefas, onipresentes em apresentações corporativas sobre gerenciamento de tempo.
Estão divididos em quatro grupos: “Urgente e importante”, “Não urgente, mas importante”, “Urgente, mas não importante” e “Nem urgente, nem importante”.
O que não é urgente nem importante pode ser simplesmente abandonado. O urgente, mas não importante, deve ser delegado a alguém. Se não for urgente mas for importante, deixa pra cuidar disso pessoalmente mais tarde.
Assim, resta ao aqui e agora somente o que é ao mesmo tempo urgente e também importante.
Apesar de incrivelmente prolífico, com mais de 30 livros de poesia publicados, duvido que o português Eugénio de Andrade precisasse seguir qualquer cartilha de produtividade. Um poeta desses sabe intuitivamente o que importa.
Seu poema “Urgentemente”, do livro “Até Amanhã”, resume em apenas 14 versos todas as emergências existenciais. Que, por sua vez, estão resumidas logo na primeiríssima frase – “É urgente o amor”.
A pandemia faz desconfiar dessa síntese.
Será que, na verdade, urgente mesmo não seria a vacina? O oxigênio nos hospitais? Os sedativos, anestésicos e bloqueadores neuromusculares nas UTIs? Os leitos nas UTIs? Um megaferiado com cara de lockdown e não de viagem de férias? Um ministro da saúde mais preocupado com a saúde do que com o cargo? Um auxílio emergencial capaz de alimentar quem não consegue mais trabalhar?
No fundo, e nem tão no fundo assim, tudo isso é amor.
“Eu não sou eu nem sou o outro”
Mário de Sá-Carneiro, 1914
Existe coisa pior que um bolsonarista: um bolsonarista enrustido.
O bolsonarista típico é orgulhoso da própria grosseria de modos e pensamento. Como gosta de pavonear suas obsessões, sempre descoladas dos fatos, fica fácil apontar seu ridículo em pleno voo – e manter uma distância sanitária de seus miasmas mentais.
Já o bolsonarista enrustido disfarça sua incivilidade com um verniz de polidez e ponderação. Nem uma nem outra resistem ao exame mais cuidadoso, porém produzem uma ilusão de racionalidade – suficiente pra arrastar um desavisado ao embate improdutivo com o negacionista.
A essa altura você aprendeu que não adianta discutir com um bolsonarista raiz, mesmo aquela tia tão divertida da sua infância ou o amigo de escola infiltrado no seu Whatsapp. Mas o bolsonarista enrustido ainda gera engajamento.
Quando se dá conta, você tá na vigésima sétima mensagem. Argumenta em loop contra a carreata que celebra a gasolina a 6 reais. Gasta o latim em reparos ao rebranding do Zé Gotinha como miliciano da imunização.
Inútil, demasiado inútil.
O bolsonarista enrustido é tão cabeça-dura quanto o bolsonarista-bolsonarista. Só finge que não. Assim faz você perder mais tempo, na fantasia de chamar à razão seu terraplanismo mal disfarçado, seu apoio crítico ao governo, seu voto nulo no segundo turno de 2018.
O maior perigo do bolsonarista enrustido é normalizar o bolsonarismo.
E com a explosão do número de mortos da pandemia, da taxa de desemprego e do índice de inflação, começa a haver uma migração em massa de bolsonaristas pro fundo do armário.
O próprio Jair Bolsonaro tenta virar um bolsonarista enrustido.
Ele agora usa máscara em público, faz live com globo terrestre na mesa e periga até trocar o general por um ministro da saúde – ou algo bem parecido com isso. Efeito Lula, claro.
Na real, ele continua o mesmíssimo.
O modernista português Mário de Sá-Carneiro levou sua crise de identidade às últimas consequências e acabou em suicídio. O Brasil, indeciso entre civilização e barbárie, já viu morrer 280 mil brasileiros. Por enquanto.
“O pior ainda não aconteceu/nem o melhor”
Antonio Risério, 1996
Nosso complexo de vira-lata já foi mais ambicioso.
No século 19, o Brasil sonhava ser a França.
A francofilia chegou com a Missão Francesa. Debret, Taunay e Montigny deram régua e compasso às artes e arquitetura locais. Liberdade, igualdade e fraternidade, porém, nunca emplacaram de verdade por aqui.
No século 20, os Estados Unidos se tornaram o benchmark.
A política da boa vizinhança botou bebop no samba – e até agora nada de o Tio Sam tocar um tamborim, quanto mais pegar no pandeiro e no zabumba. O american way of life conquistou corações e mentes dos americanos do Sul.
No século 21, caramba, até o Paraguai virou utopia.
Os hermanos foram às ruas protestar contra a falta de vacina. As manifestações derrubaram o ministro da Saúde, prontamente substituído por um outro médico. Ninguém pensou em entregar o cargo a um general.
Os paraguaios estão indignados com as 3.318 mortes acumuladas.
Sim, o total de vítimas em um ano de pandemia por lá equivale às fatalidades em apenas dois dias no lado de cá da fronteira: 12 meses versus 48 horas.
Mas os 265 mil brasileiros mortos só conseguiram provocar panelaços.
Nossos ministros da Saúde caíram porque enfureceram o chefe, o único presidente pró-vírus do planeta, não o povo.
Talvez essa apatia seja força do hábito.
Se o vizinho enfrentou com galhardia a primeira onda da peste, seguindo de largada os protocolos internacionais, aqui logo caímos num buraco negro negacionista, acostumados a um governo que tripudia da desgraça.
(Geopolítica da ironia: depois de ser preso em Assunção por falsificação de passaporte, Ronaldinho Gaúcho foi deportado. A cadeia no Paraguai se revelou menos insalubre que o Brasil, onde o ex-jogador acabou pegando covid.)
O ensaísta baiano Antonio Risério também pensa o país em poesia. Em seu livro “Fetiche”, profetizou os versos de “Epitáfio para o Século 20”.
O colapso dos hospitais mostra que infelizmente o pior ainda não aconteceu.
Nem o melhor. Quem sabe nem precisamos esperar até 2022 pra isso. Basta um tanto de indignação, paraguaia que seja.
“A imperfeição é nosso paraíso”
Wallace Stevens, 1942
Só existe uma cura infalível pro medo de fracassar: fracassar.
Eu recomendo. Nem que seja pra experimentar o maravilhoso alívio que o fracasso generosamente oferece.
Desaparece na mesma hora a ansiedade acumulada, às vezes por anos a fio, só de pensar que algo poderia vir a dar errado. Já deu. E, surpresa, o mundo continua mais ou menos o mesmo.
Acaba de supetão aquela angústia curtida na possibilidade de enrolar publicamente os pés nos tapetes das etiquetas. Já enrolou. E, se tropeçou, talvez tenha aprendido que do chão não passa.
Perfeccionismo paralisa – se não for pra fazer uma Capela Sistina, nem começo a pintar. Fracasso movimenta – como um passante que ajuda a empurrar seu carro enguiçado no meio da rua.
Os gurus de autoajuda lembram logo da “Kintsugi”, técnica japonesa de colar com ouro a cerâmica quebrada. Em vez de disfarçar a falha, o metal mais precioso faz brilhar a rachadura. Uma ode ao erro.
Os sabichões da Escola Filosófica do Sorriso de Desdém sacam logo seu Beckett prét-à-porter: “Tudo de outrora. Nada mais nunca. Nunca tentado. Nunca falhado. Não importa. Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor”.
Mas a gente costuma ser mais tolerante com nossos próprios fracassos que com os alheios.
Daria até pra remendar o verso de “Os Poemas de Nosso Clima”, atiçando postumamente o mau humor do notoriamente mal-humorado Wallace Stevens: a imperfeição dos outros é o nosso paraíso, com grifo em “outros”.
Adoramos ocupar o cargo de Ombusman da Vida Alheia. Taí a Karol Conká, simultaneamente Geni e pedra, que não me deixa mentir.
(Aliás, não é coincidência que sejam de negros as três maiores rejeições das 21 edições do BBB desse Brasil lindo e trigueiro e racista. Antes dos 99,17% da rapper, Nego Di alcançou 98,76% e, há 16 anos, Aline Santos teve 95% dos votos pra sair.)
Fracasso é só algo que acontece. Não é identidade, não é você, nem é o outro.
Bom, tudo isso foi só pra dizer a um amigo muitíssimo querido e cismado, como todo mundo volta e meia cisma, que fracassou: bem-vindo ao clube.
Agora é só seguir em frente.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.