Os Vivos e os Outros
Escrito antes da quarentena, o novo romance do angolano José Eduardo Agualusa ecoa a realidade ao explorar os medos e as reflexões de um grupo de escritores isolados na Ilha de Moçambique depois de uma grande tempestade
POR QUE LER?
Uma “natural vocação para a poesia e para o maravilhoso” ronda a Ilha de Moçambique, cidade insular ao norte do país africano — pelo menos aos olhos do escritor angolano José Eduardo Agualusa. Foi ali, onde viveu nos últimos quatro anos, que ele buscou inspiração para seu novo livro, “Os Vivos e os Outros”, publicado no Brasil pelo selo Tusquets da editora Planeta.
Não é só o cenário moçambicano cercado pelo mar, por onde passaram outros moradores ilustres como Camões e Bocage, que faz ecoar pelas páginas uma certa familiaridade com o universo de Agualusa. O autor recupera o jornalista Daniel Benchimol (considerado por alguns críticos como seu alterego) e a artista Moira Fernandes, personagens de seu romance anterior “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” (Tusquets, 2017), como dois dos protagonistas.
O enredo também deixa escapar temores conhecidos no presente pandêmico: a história se passa durante uma semana em que um grupo de escritores africanos se vê isolado por uma tempestade na ilha, onde participariam de um festival literário. Escrita antes da quarentena, a narrativa parece visionária ao apresentar os grandes medos dos personagens, despertados naquela situação e revelados aos poucos, junto a acontecimentos extraordinários e reflexões metalinguísticas sobre o fazer literário e a passagem do tempo.
Cornelia abre o WhatsApp e escreve uma mensagem para Pierre: “Estou com medo. Vem buscar-me. Amo-te muito”. Toca na seta azul, para enviar, mesmo sabendo que a mensagem não seguirá. Acordou há poucas horas e já escreveu mais de trinta. Centenas nos últimos dias. Se de repente a internet voltasse a funcionar, como Pierre receberia aquela enxurrada de palavras? Imagina o telefone apitando sem descanso, enquanto o marido pede desculpa e abandona a sala de aulas às pressas (Pierre leciona uma cadeira de escrita criativa). Sorri com a imagem e, do sorriso, passa às lágrimas, porque isso nunca ocorrerá, a internet não voltará, ela nunca sairá daquele Inferno.
O hotel tem gerador. Trabalhou sem parar nos últimos dias. Infelizmente já não se consegue comprar combustível na Ilha, de forma que o gerente optou por só ligar o aparelho entre as três e as sete da tarde. O quarto é um forno. Mesmo com as janelas abertas, custa-lhe respirar. Cornelia tentou sair para o imenso terraço e logo recuou, cega pelo bruto fulgor. Há um único sol no céu; porém, mil outros ardem sem descanso na larga superfície caiada. O Inferno é branco.
O único lugar suportável há de ser a varanda coberta, onde costumam servir as refeições. A Cornelia, contudo, não lhe apetece ver ninguém, e ela tem a certeza de que os restantes hóspedes estarão neste momento refugiados na varanda, seminus, chafurdando no próprio suor enquanto bebem cerveja morna.
— Os malditos mortos! — grita.
Arrepende-se de ter gritado. Pode ser que algum morto a ouça, se ofenda e entre no quarto para lhe pedir explicações, porque os imbecis ainda não se aperceberam de sua nova condição e trocam frivolidades como se estivessem vivos e inconscientes da condenação eterna.
Pensa na Mulher-Barata. Quando publicou o livro nos Estados Unidos, todos os jornalistas, sem exceção, lhe colocaram perguntas sobre Kafka: qual é sua relação com a obra do escritor? Com que idade o leu pela primeira vez? Kafka é popular na Nigéria? Cornelia nunca contou a verdade: que a ideia para a personagem não surgira a partir da leitura de A metamorfose. A Mulher-Barata apareceu na vida dela muito cedo. Entre os dois e os seis anos, foi criada por uma tia, num bairro suburbano de Lagos, enquanto a mãe, imigrada em Nova York, lutava para sobreviver, estudando e trabalhando, primeiro como dançarina de striptease e depois como cartomante, antes de concluir o curso e conseguir um bom emprego num banco. A tia ganhava algum dinheiro trançando cabelos em casa. Não tendo com quem a deixar, costumava trancá-la na cozinha sempre que precisava sair e não a queria levar consigo. A porta da cozinha era rasgada, ao alto, por uma pequena janela, através da qual entrava, durante o dia, uma luz esparsa. Caso anoitecesse antes de a tia chegar, a pequena Cornelia assistia, aterrorizada, ao arrebatamento das baratas. Irrompiam às dezenas do soalho e das paredes e logo enchiam o pequeno compartimento, saudando-se umas às outras como comparsas numa festa, enquanto buscavam restos de sonhos e de comida deixados pelos homens. A menina ficava imóvel, incapaz de fazer um gesto, sentindo as leves patas a percorrerem-lhe o corpo. Certa noite em que a tia demorou a regressar, e já lhe doíam todos os músculos (experimentem permanecer três horas imóveis), escutou uma minúscula voz, e depois outra, e outra ainda, dando-se conta, maravilhada, de que conseguia ouvir a conversa das baratas, embora não fosse capaz de compreender o que diziam. Nos anos seguintes, não só aprendeu a comunicar-se com os insetos como se tornou muito próxima de um deles. Tão amiga, na verdade, que começou a imaginá-la como uma garota de sua idade: Lucy, a Menina-Barata.
E agora ali está ela, numa ilha que se perdeu do mundo, e a Menina-Barata cresceu e veio buscá-la. Mas já não são amigas.
- Os Vivos e os Outros
- José Eduardo Agualusa
- Tusquets
- 208 páginas
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