Promessa de Pai
Em livro de memórias, Joe Biden, candidato democrata à presidência dos EUA, reconta a morte do filho e os bastidores da Casa Branca em 2015
POR QUE LER?
O homem que pode impedir a reeleição de Donald Trump foi vice-presidente de Barack Obama e senador por quase 40 anos pelo estado americano de Delaware – e isso é provavelmente o que a maioria dos brasileiros sabe sobre Joe Biden. Porém, não muito tempo atrás, a trágica morte de seu filho Beau – figura popular no meio político de Delaware e que aspirava se lançar candidato a governador do estado – comoveu os EUA e alterou os planos de Biden pai sobre concorrer à presidência nas eleições que elegeriam Trump em 2016. Essa história, que mistura a vida pública e pessoal da família Biden, está no livro “Promessa de Pai”, narrado em primeira pessoa pelo agora candidato democrata à presidência dos EUA. O título chega ao Brasil pela Intrínseca às vésperas do novo pleito norte-americano.
Lançado originalmente em 2017 e best-seller nos EUA, a obra reconta os últimos meses antes da morte de Beau Biden aos 46 anos, por causa de um câncer no cérebro, em maio de 2015 – o episódio tem sido, inclusive, aludido na campanha e nos debates da atual corrida presidencial. Recuperando lembranças da memória e de seus diários, Joe Biden compartilha em detalhes a luta do filho contra a doença, os momentos em família e os bastidores da Casa Branca que atravessaram o luto do então vice-presidente naquele período conturbado também para os EUA – em seu último ano no governo de Barack Obama, ele enfrentou crises de política externa na Ucrânia, na América Central e no Iraque.
Com o olhar crítico que as autobiografias exigem – sobretudo aquelas de figuras políticas, quase sempre controversas –, a leitura vale para conhecer um pouco mais da vida e, principalmente, o lado humano do candidato favorito nas pesquisas. Tendo como vice na chapa Kamala Harris, mulher e descendente de imigrantes não-brancos, e apostando em propostas consideradas progressistas, Biden bate de frente com o estilo conservador de Trump e, por isso, tem recebido o apoio de celebridades, de parte importante da mídia norte-americana e até do mercado financeiro.
Acordamos na manhã do Dia de Ação de Graças e fizemos nosso Trote do Peru anual – uma corrida de mais de quinze quilômetros (para quem tivesse disposição) até o outro lado da ilha. Fiz a rota de bicicleta com alguns netos. Passamos parte do dia jogando futebol americano na praia. Mostrei ao jovem Hunter os barrancos onde seu pai e seu tio costumavam pular e trocar passes com a bola de futebol americano quando tinham a idade dele. Beau, Hallie e seus filhos cuidaram de tirar algumas boas fotos dos quatro juntos na praia. E fomos à casinha em estilo saltbox para nossa foto anual, mas o terreno estava cercado por uma fita amarela da polícia. A casa tinha sumido, vítima de marés altas que vinham levando um metro ou mais do Barranco de Sconset a cada ano nas últimas duas décadas. Anos com tempestades fortes podem levar até dez vezes mais do que isso em certos lugares. SELVAGENS PARA SEMPRE ficara sem chão, e seu tempo se esgotara; fora varrida para dentro do Atlântico. A única coisa que restara era um pedaço da fundação.
Voltamos ao cetro da cidade no dia seguinte ao de Ação de Graças, fazendo todo o possível para que estivéssemos no lugar certo ao entardecer para assistir à cerimônia anual em que a árvore de Natal de Nantucket é acesa. Beau havia pedido Hallie em casamento na cerimônia de 2001, e os dois se casaram na igreja de St. Mary, no coração da ilha, no ano seguinte. Hallie sempre suspeito que essa foi a maneira de Beau prendê-los para sempre ao Dia de Ação de Graças da família Biden. E funcionou. Eles estavam comemorando o 12º aniversário naquele fim da semana, e Hallie nunca faltara a um Dia de Ação de Graças. Mesmo no ano em que Beau estava no Iraque, ela insistiu para que todos nós mantivéssemos a tradição e fôssemos para Nantucket.
Enquanto fazíamos nosso passeio em família, me vi remoendo uma questão que começava a pesar sobre mim. Eu estava recebendo muitas perguntas, vindas de todos os lados, sobre concorrer à presidência em 2016. Até o presidente Obama me surpreendera ao perguntar diretamente sobre meus planos em um de nossos almoços regulares algumas semanas antes. Ele queria saber se eu havia pensado em todas as coisas que poderia fazer se não concorresse. E assegurou que, mesmo assim, eu poderia fazer a diferença. Poderia montar uma fundação ou um centro de política externa, por exemplo. Poderia até fazer algumas coisas que nunca fizera antes – como ganhar algum dinheiro. “Mas você tomou uma decisão [sobre concorrer]?”, perguntou-me o presidente, sem rodeios, do outro lado da mesa, em um pequeno espaço privado perto do Salão Oval. “Não”, foi tudo o que consegui dizer.
Em algum momento nas ruas de Nantucket, naquele dia, abordei a questão sobre 2016 com meus dois filhos. Tinha uma sensação de que eles não queriam que eu concorresse. Falei isso para eles, e Beau olhou para mim. “Precisamos conversar, pai”, disse ele. Então, quando voltamos para a casa naquela noite, nós três nos sentamos na cozinha e conversamos.
Eu sabia que havia muitos bons motivos para não concorrer, e a incerteza sobre a saúde de Beau era o maior deles. E eu realmente achava que meus filhos, cujas avaliações eu passara a valorizar e nas quais eu confiava, não queriam submeter a família à provação de uma campanha presidencial naquele momento. “Pai, você entendeu tudo errado”, falou Beau quando nos acomodamos na cozinha. “Você tem que concorrer. Eu quero que você concorra.” Hunter concordou. “Nós queremos que você concorra.” Conversamos durante uma hora. Eles queriam saber o que eu estava fazendo para me preparar e qual seria o momento certo para fazer o anúncio. Alguns de meus especialistas políticos argumentavam com firmeza que, se eu fosse concorrer, deveria anunciar logo, já no início de 2015. Mas acho que nós três queríamos um pouco mais de tempo para ver o que aconteceria com Beau. O momento da decisão não era crucial, meus filhos me disseram; eles só queriam que eu soubesse que eram a favor. Hunt ficou me dizendo que, de todos os potenciais candidatos, eu era o mais preparado e o mais capaz de liderar o país. Contudo, foi a convicção e a intensidade na voz de Beau que me pegaram desprevenido. Em determinado momento, ele disse que era minha obrigação concorrer, meu dever. Dever era uma palavra que Beau Biden levava a sério.
Quando embarcamos no Air Force Two para a viagem de volta naquele domingo, todos pareciam felizes. Os cinco dias haviam sido um sucesso em todos os aspectos. Jill escondera as listas completas de Natal por segurança. Tinha sido um ótimo passeio. Nós dois – Jill e eu – chegamos ao Observatório Naval naquela tarde e subimos a imponente escada central até o segundo andar para nos acomodarmos nos aposentos que usávamos quando estávamos a sós. Era um espaço pequeno e meio atulhado, mas era nosso pedacinho de lar dentro de uma residência projetada em grande parte para uso público. Havíamos mobiliado a sala de estar com sofás de couro que combinavam com os de nossa biblioteca em Wilmington e alinhado as prateleiras com nossos livros favoritos e fotos da família. Havia uma mesinha em um canto que servia de mesa de jantar a dois, onde comíamos à luz de velas mesmo sob o persistente sol do verão.
Eu me sentei em nosso sofá, em um lugar da casa que parecia verdadeiramente pertencer a nós, para relaxar e refletir. Mas havia uma imagem que eu não conseguia tirar da cabeça. Continuava vendo a casinha de SELVAGENS PARA SEMPRE arruinada pela poderosa indiferença da natureza e pela inevitabilidade do tempo, não mais capaz de se manter de pé. Quase podia ouvir o estalo quando sua estrutura cedeu, podia visualizar a maré indo e voltando, arrastando-a sem piedade ou remorso até ela ficar à deriva e ser engolida pelo mar. Nenhum Dia de Ação de Graças jamais seria o mesmo. Peguei meu diário e comecei a escrever. Eu tinha, sim, um grande item para a minha lista de Natal daquele ano, mas o estava guardando para mim: ObsNasc, 30 de novembro de 2014, 19h30. Em casa, chegando de Nantucket. Rezo para que tenhamos outro ano juntos em 2015. Beau. Beau. Beau. Beau.
- Promessa de Pai
- Joe Biden
- Intrínseca
- 256 páginas
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