Fernando Henrique
Frustração
Por quantos séculos pretos, mulheres, pessoas LGBTQI+ e pobres tiveram — e ainda têm — que suportar ‘brincadeiras’ ou comentários depreciativos e aceitá-los?
Na busca para entender o incômodo que habita em mim fui relembrar Artur Bispo do Rosário. Foram 50 anos internado em um manicômio na cidade do Rio de Janeiro, onde se tornou artista plástico. É um dos negros mais importantes do circuito das artes, morreu sem conhecer a sua fama, que lhe foi concedida, a meu ver, como essa cultura muito comum na internet: um dia você é um louco; no outro, um gênio.
Durante a leitura, outras inquietações me foram apresentadas. Bispo do Rosário preparava com seus trabalhos uma espécie de inventário do mundo para o dia do juízo final.
Foi aí, então, que decidi que minha dose diária de conectividade passaria para cinco horas navegando: stalkeando, estudando online, mas sempre com foco em entender o novo ou em busca de informações relevantes.
A ideia de ver o outro, ou melhor, ler o outro como alguém que está próximo ao seu pensamento, ou alguém que se parece com você — imprime em muito pouco tempo um falso afeto que conduz para uma série de opiniões em diversos assuntos, mais ou menos complexos, de forma simplista. Um tal de gosto ou não gosto. Argumento é número de seguidores. Estudo se torna mídia.
Uma comentarista de TV e internet é centro de uma discussão acerca do reconhecmiento da profissão de cientista político (A revista Piauí publicou artigos contra e pró). Para ensinar como funcionam os três poderes a personalidades, ela reduz a macropolítica com um discurso pobre e básico, pelo menos para quem vivenciou a academia ou teve oportunidade e acesso a livros. Frustrante.
Defender direitos agora é ‘mimimi’, como muitos vomitam por aí
Também na internet, uma jornalista negra fala que estamos vivendo a era do politicamente correto, “hoje tudo é racismo, tudo é preconceito”. Ela diz ter sido a primeira a usar a Lei Afonso Arinos, que proíbe a discriminação racial no Brasil. O comentário simples e pouco pensado expõe de forma negativa quem está do outro lado do balcão. Será que não passou pela sua cabeça em nenhum momento que, sim, a depender do que se fala, como se fala, para quem se fala e em que situação a coisa é dita ela é, sim, racismo ou preconceito? Por quantos séculos pretos, mulheres, pessoas LGBTQI+ e pobres tiveram — e ainda têm — que suportar “brincadeiras” ou comentários depreciativos e aceitá-los? Defender direitos agora é “mimimi”, como muitos vomitam por aí.
Não menos importante, um outro jornalista, que faz um dos podcasts de política mais interessantes do Brasil, relata no Twitter a experiência desconcertante em que ele pede para um eletricista subir pelo elevador social do seu prédio. O moço muito simples, segundo ele, agradece por sua humildade em tê-lo recebido pela porta da frente. Com tudo o que estamos vivendo temos que considerar dignidade um avanço? Até porque, isso está na Lei Nº 7.716, Artigo 11, que diz que é proibido “impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso por conta de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A pena para quem não cumpre é de um a três anos de reclusão. O que dizer do profissional compartilhar o respeito a outro com um adjetivo relacionado a seu caráter? Frustrante.
Sobre a reação ao programa de trainee para negros da gigante do varejo, dado o nível de desigualdade do país, dizer que é frustrante é quase um clichê.
Os comentários dos profissionais de comunicação sobre o primeiro debate dos candidatos à presidência nos Estados Unidos da América são assustadores, frente a tudo o que vivemos atualmente e o que escutamos: um é mentiroso, o outro não tem postura como presidente ou não tem carisma… É frustrante.
Os 11 candidatos à prefeitura de São Paulo, convidados para o primeiro debate das eleições 2020, são um teste à prova de desrespeito à minha e à sua inteligência. Ataques a tudo e todos em vez de informação ou propostas reais para o Estado. Dessa vez, descobri a frustração do amanhã. A sensação de incapacidade diante dos desgostos presenciados.
Um estudo publicado recentemente, mostra que o uso da internet no Brasil cresceu durante a quarentena. Um aumento entre 40% e 50%, segundo dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Resolvi conhecer quem são as caras e as vozes das redes desse período e, mais importante, que tipo de ideias defendem.
Foram 150 horas conectado no mês de setembro, um tempo de consumação exaustivo. Refletindo e questionando, flertei com o amor do outro e pelo outro, e também com o ódio do outro. Avançando um pouco mais, passei a pesquisar textos para saber se eram verdadeiros ou falsos, o que tomou conta de mim. O prazer de ler comentários nas reportagens, que nos permite saber o que uma parcela dos leitores pensa, me levou aos principais jornais do mundo, até aos de línguas que desconheço (fiz do tradutor uma companhia). Também me voltei ao básico, o jornalismo cotidiano, mas com olhos específicos para os profissionais que migraram para as redes sociais e se tornaram uma espécie de influencers com diploma. Aqui passei meu maior tempo. (Ou, melhor, perdi tempo.)
A diversidade que pode e deve ser no mínimo interessante não existe na internet
O que me instigou foi o desejo de entender como alguém pode ser amado ou odiado, o que as pessoas estão questionando na hora em que o mundo reduziu a velocidade e nos demanda uma dose de reposicionamentos frequentes. Por que que eu deveria gostar ou não; por que é importante gostar ou não?
A diversidade que pode e deve ser no mínimo interessante não existe na internet. São os pensadores ou os influencers que vão dizer o que é ou não importante para que as coisas sejam, de fato, relevantes. É frustrante. Triste e vergonhoso.
Por que é notícia um homem negro com cabelos crespos apresentar um jornal? E, como se não bastasse lidar com todas as frustrações, sim, lido também com o que dita a moda. As agendas do momento são gênero e raça. Faltando pouco para o Dia da Consciência Negra no Brasil, empresas, veículos de comunicação e outros se preparam e começam a organizar o seu casting para discutir o óbvio: muito se diz, mas pouco se realiza no país.
Por conta da cor, pelo famoso lugar de fala, e talvez por minha formação acadêmica, às vezes sou sondado para o dia de “preto brilhar”, 20 de novembro. E dos oito convites que me foram feitos — entre elas escrever um texto, dar uma palestra, fazer um filme para a internet — nenhum deles é remunerado. Nenhum. Minha leitura? “Aproveite o momento para levantar a bandeira da sua gente. Não precisamos te pagar para isso; na verdade, é uma oportunidade.”
Além de ser frustrante, é algo mais: a morte do bom senso. Mudar pressupõe repensar a economia e a distribuição de renda. Assim, outros países mostram mais sucesso em como reparar a desigualdade, a oportunidade e a liberdade, que, hoje, no Brasil, representam enormes frustrações.
Fernando Henrique é jornalista e produtor cultural, mestre em Economia da Arte e em Projetos Culturais para Espaços Públicos pela Sorbonne, na França. É correspondente da CNN Brasil em Nova York
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