Coluna do Fernando Henrique: Ser tenaz e maleável — Gama Revista
COLUNA

Fernando Henrique

Ser tenaz e maleável

Ações reais não serão possíveis enquanto não entendermos o processo de orientação e movimento por meio das experiências de cada um e formos capazes de respeitá-las

13 de Julho de 2020

Na buscar por redefinir meu consciente urbano, lembro-me da última visita a uma exposição. Em 25 de janeiro de 2020, junto a amigos, no Museu Dia Beacon. Era um dia de muita chuva. O espaço que fica mais ou menos a uma hora e 20 minutos de Nova York, de trem, reúne vasta coleção com obras produzidas, em sua maior parte, nas décadas de 1960 e 1970.

Ali, é possível ver algumas dezenas de trabalhos dos nomes mais respeitados da arte contemporânea. De Joseph Beuys a Andy Warhol, de Louise Bourgeois a Bruce Nauman, uma espécie de templo minimalista onde as possibilidades de se (re)construir são infinitas.

O subsolo é tomado pelas obras de um amor antigo: Richard Serra. O escultor norte-americano, que não busca ser útil ou adaptado ao espaço, apresenta trabalho monumental que interage com o público, deixando-o penetrar em seu universo.

Ferro é um metal. É um dos elementos mais abundantes do universo. Os últimos tempos me fizeram repensar a existência desse elemento, que se traduz como força, constrói e destrói. Provoca e inspira. A difusão da matéria, no início, era para a fabricação de ferramentas e armas. Este objeto, quando repensado, mudou a maneira de viver o mundo.

Pode ser maleável e tenaz ao mesmo tempo; versátil e sutil. Ele, o ferro, está por toda parte, inclusive no nosso sangue.

“Torqued Ellipse I” (1996), “Torqued Ellipses II” (1996) ou mesmo a “Double Torqued Ellipse” (1997) permitem ao visitante descobrir um mundo de força e espaço, e a discutir a maneira de enxergar o daqui para frente. As instalações são enormes chapas de aço contorcidas que claramente elaboram preocupação com a orientação e com o movimento, o que desestabiliza nossa experiência no ambiente enquanto tentamos comprender o volume escultural.

Encarar o ‘novo normal’ é uma superfície completamente abstrata e distorcida para encontrar o que, de fato, faz sentido para você

Nossos últimos tempos estão marcados pela busca contínua de força. Se tornou algo de essência. Sobreviver. Passaram-se seis meses do novo coronavírus. Muitas mortes. Muitas infecções. Muitas insatisfações. Tudo está sendo reposicionado. Tudo está diferente de ontem. Diferença essa com a qual, em vários momentos, eu não sei lidar. Nós não sabemos lidar — me comprometo com a generalização do nós.

Do mais alto escalão do poder público à minha melhor amiga, buscamos um equilíbrio e/ou uma ideia de força para estar vivo. Encarar o que está determinado como “novo normal” é uma superfície completamente abstrata e distorcida para encontrar o que, de fato, faz sentido para você.

As obras de Serra, para mim, atualmente, consistem no entendimento de que nenhum contexto é neutro. Tudo carrega significados ideologicos. Isso pode surtir como uma filosofia de botequim, palavras sem sentido ou soltas para contextualizar um sentimento. A flexibilidade para transitar entre um pensar tenaz e um estar maleável me mostrou um caminho ardúo. Por quê? São muitas as sensações e, a maior para mim, é a falta de. A falta de Entender. A falta de Poder. A falta de Paciência. A falta de Cultura. A falta de Liberdade. A falta de Força. A falta de Sexo. A falta de Resistir. A falta de… Minhas variadas faltas.

Nunca tinha pensado sobre a consciência física de um recinto. Me relacionar com um lugar, com o tempo e com o movimento fez com que eu, naquele momento de 25 de janeiro até agora, desfrutasse de uma força além do meu eu, quase que roubando a autoridade do aço e abusando da oportunidade completamente nova: a sensação de presenciar um sentimento de volume, grandeza.

A Covid-19, o assassinatado de George Floyd, as manifestações antirracistas no planeta, o mês da luta contra discriminação de gênero e a luta contra crimes de homofobia, o aumento da violência contra a mulher, o crescimento de desemprego no mundo revelam a mim que nós não aprendemos o significado dos verbos: to roll (rolar), to prop (sustentar) and to bend (dobrar); teoria de verbos transitivos escrita em uma lista por Richard Serra e que dá luz aos seus trabalhos. A lista é uma estratégia criativa que permite conceitualizar as ações e processos cotidianos que devem ser aplicados à vida real.

Esse comportamento atual, de ser um operário atrás de uma fonte de força, me fez perceber que ações reais não serão possíveis enquanto não entendermos o processo de orientação e de movimento por meio das experiências de cada um e formos capazes de respeitá-las.

A minha falta, hoje, termina com a ausência de energia e o excesso de informação. Não há resposta ou orientação de movimento que atenda à minha vontade de chegar no amanhã, como propõe a obra de Serra, com equilíbrio.

Fernando Henrique é jornalista e produtor cultural, mestre em Economia da Arte e em Projetos Culturais para Espaços Públicos pela Sorbonne, na França. É correspondente da CNN Brasil em Nova York

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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