Coluna do Fernando Luna: O riso do idiota — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

O riso do idiota

Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre 2020 com jeito de 1984, a Capela Sistina e seus haters, o boneco do posto Ipiranga e a dúvida sobre quem faz o melhor desfile: bicheiros ou milicianos?

28 de Setembro de 2020

“E A PRIMAVERA ME TROUXE O PAVOROSO RISO DO IDIOTA”

Arthur Rimbaud, 1873

Este 2020 não passa de um 1984 chinfrim. Em vez do Grande Irmão vigilante, o Pequeno Bozo e seus bolsominions sorridentes.

Se bem que acabamos de viver uma mais-que-perfeita versão da Semana do Ódio, a grande celebração nacional na distopia de George Orwell.

Começou na manhã de terça passada, com uma demonstração didática da Novafala negacionista. Terminou na noite de sexta, com as câmeras sempre atentas registrando barracos com IPTU de Leblon e Jardins.

Na abertura da Assembleia Geral da ONU, Jair Bolsonaro incorporou novamente o orwelliano Ministério da Verdade, aquele que apregoa “Guerra é paz”, “Liberdade é escravidão” e “Ignorância é força”.

Mas o presidente criou sua própria etimologia da mentira. Transformou “Latifundiários desmatadores” em “Índios e caboclos”, “Auxílio emergencial” em “Mil dólares” e “Amazônia queima” em “Líder em conservação de florestas”.

Apenas três dias depois, os idiotas encontraram mais dois motivos para escancarar a boca cheia de dentes.

No Leblon, choque cultural. No bar, a ética TFP da Zona Sul, com vista grossa pra máscara e tolerância zero com biquíni. No carro, a estética Miami Beach, com conversível branco e nomes gringos – Will, Sheila e Priscilla. O engarrafamento da Dias Ferreira virou um engarrafamento literal, garrafas d’água voando.

Nos Jardins, o homem sem máscara mas com CRM se revoltou por não conseguir uma mesa fora do horário de funcionamento do restaurante. Os comensais reagiram. Um ligava para “O meu delegado”, outro rebatia “A gente tem berço”. No dia seguinte, ameaça grã-fina: “A plaquinha do seu Mercedes tá gravada, se cuide”.

A epidemia de boçais se alastra na velocidade da pandemia de coronavírus. Comer fora ficou duplamente arriscado, melhor usar aplicativo de delivery como equipamento de proteção individual.

Esse climão de gargalhada no escuro e escárnio domina o país.

Quase deixa a treta de Rimbaud com seu amante e poeta Paul Verlaine, um dos motes do poema em prosa “Uma Temporada no Inferno”, parecendo briga de comadres. E olha que lá sobrou até tiro.

“A REALIDADE SEMPRE É MAIS OU MENOS DO QUE NÓS QUEREMOS”

Ricardo Reis, 1916

O problema está mais no “queremos” e menos na “realidade”: ninguém sabe direito o que quer.

Quem reclamava da onda de calor semana na passada, hoje se queixa da frente fria. Se a pasmaceira da quarentena gerava crises de ansiedade, o corre-corre da quarentena flexibilizada traz de volta picos de estresse.

Sempre falta ou sempre sobra algo.

Daí a luta de Ricardo Reis, o mais estoico dos heterônimos de Fernando Pessoa, para se livrar das paixões mundanas e suas inevitáveis frustrações. No poema “Segue o Teu Destino”, faz uma ode à vida serena.

Mas nossa insatisfeitíssima espécie jamais sossega. Ou quer mais e por isso se decepciona, ou quer menos e por isso se decepciona – só que pelo avesso.

O melhor indicador do desajuste entre a realidade e o querer é um estudo de Harvard. Não, mentira, desculpa te desapontar. Na verdade, é o Trip Advisor mesmo.

Dá uma olhada nas avaliações que os usuários do site fizeram da Capela Sistina. Michelangelo se esforçou ali. O papa curtiu. Ainda assim, 512 pessoas classificam a visita como “Horrível”: “As pinturas do teto são uma confusão” e “Nada mais do que um quarto elaboradamente pintado”. A Capela Sistina!

As pirâmides de Gizé, precipitadamente chamadas de “Maravilha” no mundo antigo, precisam ralar bastante pra defender o título. “Horrível”, repetem em coro 136 internautas. “Só vá se não tiver outra coisa para fazer”, aconselha um crítico. Hum, o que será que tá passando agora na TV Cairo?

Como somos do contra nos dois sentidos, o inverso também acontece: algumas boas almas dão um jeito de encontrar graça na desgraça.

No peculiar Museu dos Banheiros, em Nova Déli, por exemplo. Esse Louvre dos bidês mereceu impecáveis 5 estrelas de 36 visitantes, além de uma descarga de comentários elogiosos como “Meu neto me obrigou a ir, é meio fora de mão, mas gostei da visita” ou “O guia era um pouco apressado e não me deu chance de fazer muitas perguntas, porém valeu a pena”.

O Homo sapiens, francamente, devia ser humilde e urgentemente reclassificado como Homo non sapiens o que quer.

O PREÇO DO FEIJÃO NÃO CABE NO POEMA. O PREÇO DO ARROZ NÃO CABE NO POEMA.

Ferreira Gullar, 1963

Também não cabem no poema – e cada vez menos, no bolso – os preços do tomate, frango, alface, porco, batata e ovos.

Todos em alta de até 28,9%. O óleo de soja também ficou mais caro. Isso, porém, não impede a estrepitosa fritura do Paulo Guedes, em fogo cada vez menos brando.

Em menos de dois anos, o posto Ipiranga foi reduzido a boneco de posto: inflado como seu ego, sacoleja sem sair do lugar, como suas propostas. E sem saber o que fazer com os braços ou com o país.

Isso até que é bom. Um viva à incompetência do ministro.

Imagina a catástrofe ainda maior que a catástrofe atual, fosse ele capaz de colocar em prática ao menos uma única de suas ideias da Escolinha do Professor Raimundo de Chicago.

Taí o contraexemplo de seu coleguinha Ricardo Salles. Com sua gestão eficiente e letal, virou uma espécie de Peter Drucker do apocalipse ambiental. Depois de cortar as verbas do Ibama e do ICMBio, periga dobrar a meta de carbonizar 15% do Pantanal.

Encalhamos num paradoxo em que quanto mais ineficiente o governo, melhor para o país.

A combinação de preços altos com auxílio emergencial baixo fez o presidente arrancar de vez a máscara liberal – a única que tolera usar, ainda que sem convicção. Passou um pito estatal nos empresários, cobrando patriotismo e congelamento de preços dos donos de supermercados.

Opa, ouviu isso? Foi o barulho da mão invisível do mercado, dando um tapa na cara de quem acreditou no liberalismo dessa turma.

Quando Ferreira Gullar escreveu “Não Há Vagas”, a inflação era de 79,9% e o golpe militar estava logo ali. Agora, encaramos recessão, desemprego em massa e escalada antidemocrática. A esquerdofobia do “Vai pra Cuba!” ganhou o reforço do “Vai pra Venezuela!”.

Por enquanto, só o arroz encarou a viagem socialista. Justamente esses dois países com vermelho nas bandeiras estão entre os maiores compradores do grão brasileiro.

Logo alguém em Brasília vai recauchutar o slogan: “O Arroz É Nosso”.

MINHA PÁTRIA É COMO SE NÃPO FOSSE, É ÍNTIMA DOÇURA E VONTADE DE CHORAR

Vinicius de Moraes, 1949

Enfim uma boa notícia: a pandemia suspendeu a bolorenta parada de Sete de Setembro em Brasília.

Em compensação, fomos impiedosamente atingidos pela campanha “Um Povo Heroico”. Celebrando a data pátria, um ex-ator de Malhação recita o hino nacional numa poltrona roxa gigante, ao som de “Dorime Ameno”.

Pensando bem, tragam o desfile de volta. Mas com algumas mudanças.

Saem a banda dos Dragões da Independência e a Esquadrilha da Fumaça, entra o Marcelo D2. Muito mais música e muito mais fumaça, por muito menos. Qualquer lobo-guará economizado ajuda a compensar a explosão do déficit nas contas públicas.

Em vez de milicianos no palanque cívico-militar, convoquem os bicheiros cariocas. Bandido por bandido, melhor ficar com quem tem larga experiência em fazer uma multidão desfilar entre criações de Oscar Niemeyer. Um pouco da Marquês de Sapucaí na Esplanada dos Ministérios.

Nesse ritmo de escola de samba, vale lembrar que a comissão (de frente) fica em 80% do salário na mão do Fabrício Queiroz. Se complicar, pede sigilo ao juiz, argumentando não ter nada a esconder. A ala das baianas dobra de tamanho, reforçando a estratégia de atrair o voto nordestino.

Fantasia? Tem de sobra, com destaque para “20 Meses sem Corrupção no Brasil”, confeccionada pela Secretaria de Comunicação. Já harmonia, tá em falta: um setor do governo está sempre se digladiando com o outro, quando não decide brigar entre si mesmo.

No quesito evolução, andamos pra trás. Basta conferir qualquer indicador econômico ou ambiental. O enredo lamentavelmente é de quinta categoria. Mestre-sala e porta-bandeira também perdem pontos – Sérgio Moro já dançou e Paulo Guedes tá miudinho.

E se o Itamaraty serve como alegoria do Brasil, te dou um dado. Vinicius de Moraes era nosso vice-cônsul em Los Angeles, quando escreveu “Pátria Minha”. Mais: ele mandou o poema por carta para João Cabral de Melo Neto, então vice-cônsul em Barcelona. Em agradecimento, o pernambucano imprimiu os versos em sua prensa particular. Íntima doçura.

Hoje, sobrou a vontade de chorar.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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