Nada Ortodoxa
Livro de memórias de Deborah Feldman, que inspirou a premiada série da Netflix, narra a vida no interior de uma comunidade de judeus ultraortodoxos em Nova York
POR QUE LER?
Para quem se impressionou com o retrato da comunidade de judeus hassídicos em “Nada Ortodoxa” (2020), da Netflix, o homônimo livro de memórias de Deborah Feldman é um mergulho ainda mais profundo naquele universo. A obra que inspirou o roteiro da série – vencedora do Emmy de Melhor Direção em Minissérie ou Filme para a TV e indicada em outras três categorias – foi lançada originalmente em 2012 e chega agora ao Brasil pela editora Intrínseca, com posfácio inédito da autora.
Sem as pitadas de ficção da produção da Netflix, a escritora nova-iorquina narra em primeira pessoa sua experiência na comunidade ultraortodoxa de Satmar, no Brooklyn, onde foi criada e de onde decide se afastar aos 23 anos. Mesmo para uma garota que lia escondido os livros de Jane Austen e outros títulos proibidos por um rígido código de conduta, escapar da tradição e imaginar uma nova vida longe da família e do casamento arranjado é um processo cheio de contradições.
O jogo entre pertencimento e liberdade permeia as páginas, cuja leitura é rápida e intrigante. Afinal, a linguagem fluida e direta de Feldman encontra espaço para descrever em minúcias os costumes, definidos por ela como interpretações extremas das leis judaicas e mantidos geração após geração. Um prato cheio para a curiosidade dos leitores que nunca habitaram um mundo como aquele.
Nidá, diz a professora, se traduz literalmente como “relegada”, mas não significa isso de fato, apressa-se a me assegurar. É apenas a palavra usada para se referir ao “tempo” da mulher, as duas semanas do mês em que, segundo a lei judaica, ela é considerada impura. É o que estudo agora no meu curso de noiva, as leis de nidá.
Pedi que traduzisse o termo para mim. Primeiro, ela relutou em responder, mas depois insisti e, conforme me explicava rapidamente os benefícios proporcionados pelas leis de nidá para o casamento, senti o sangue subir à cabeça. Ser relegada, mesmo que por conta de impurezas, é humilhante. Não sou suja.
Ela diz que na época do Templo as mulheres não tinham permissão de entrar devido ao perigo de menstruarem e, desse modo, conspurcar o lugar inteiro. Nunca se sabe quando a menstruação vai chegar. As mulheres, diz minha professora de kallah, têm ciclos muito imprevisíveis. Por isso é tão importante, afirma, a pessoa se examinar na hora que sentir que sua menstruação desceu.
A mulher se torna nidá, ou “relegada”, assim que a primeira gota de sangue deixa seu útero. Quando está nidá, seu marido não pode tocá-la, nem mesmo para lhe oferecer um prato de comida. Ele não pode ver parte alguma de seu corpo. Não pode ouvi-la cantar. A mulher fica proibida para ele.
Essas foram algumas das coisas que aprendi no curso de noiva. Sempre que deixo o prédio do conjunto habitacional cor de barro onde vive minha professora de kallah, sou levada a dividir as mulheres que vejo na rua em duas categorias – as que sabem e as que não sabem disso tudo. Estou no meio-termo, começando a aprender com realmente funciona o mundo onde vivo, mas ainda no escuro sobre muitas coisas. Não consigo evitar um olhar acusador à esposa devota que empurra um carrinho de bebê duplo pela Lee Avenue. “Você não se importa?”, tenho vontade de perguntar. “Simplesmente aceita que é suja por ser mulher?” Sinto-me traída por todas as mulheres em minha vida.
Não imaginava que as coisas fossem tão complicadas. Casamento deveria ser algo simples, a chance de eu finalmente construir um lar próprio. Eu ia ser a melhor dona de casa, a melhor cozinheira, a melhor esposa.
Quando cessa a menstruação, diz a minha professora de kallah, a mulher deve contar sete dias limpa, realizando inspeções duas vezes ao dia com panos de algodão para ter a certeza de que não há sinal de sangue. Após sete dias “brancos” consecutivos, ela imerge na mikvá, o banho ritual, e volta a ser pura. Pelo menos segundo a professora de kallah. Não consigo imaginar minhas primas casadas fazendo isso.
Uma vez purificada, em geral por duas semanas no mês tudo está como deve ser. Há muito poucas regras quando a mulher está “limpa”. É por isso, afirma a professora de kallah, que o casamento judaico dura mais que todos os outros. Dessa forma, sempre ocorre uma renovação dos laços entre marido e mulher, assegura ela. Nunca fica entediante. (Ela quer dizer que nunca fica entediante para o homem? Eu não deveria perguntar uma coisa dessas.)
Os homens só querem o que não podem ter, explica ela. Eles precisam do padrão recorrente de negação e liberação. Não sei se gosto de pensar em mim desse jeito, como um objeto periodicamente disponível para o prazer masculino.
– Quer casar ou não quer? – pergunta ela, irritada, quando expresso minha preocupação.
Isso me deixa desconfortável, pois o que posso responder? Se disser outra coisa além de sim, será um escarcéu. Todo mundo vai saber.
– Claro. Claro que quero casar. Só não sei se consigo me lembrar de todas essas regras.
Ela me mostra os panos brancos usados para a inspeção. Quadrados de algodão com arremate em padrão de zigue-zague denteado, com uma pequena tira de tecido em um dos cantos.
– Para que serve isso? – pergunto.
– É só para puxar se ficar preso – diz ela.
Os paninhos repousam sobre a toalha de mesa encardida, de plástico, tremulando ligeiramente toda vez que um pouco de brisa de verão adentra pela janela da cozinha.
Você tem de se checar duas vezes ao dia, uma de manhã, ao acordar, e uma antes do shkiyah, o pôr do sol. Se esquecer uma delas, deve ligar para um rabino e perguntar se tem um problema ou se é preciso começar do início. Caso se inspecione e não encontre sangue, mas o pano sair manchado, é preciso levá-lo ao rabino para ele dizer se a mancha é kosher ou não. Se sua roupa de baixo estiver suja, é preciso mostrá-la também. Ou pode pedir a seu marido que leve.
No fim, quando a mulher tiver catorze panos limpos para provar a sua dedicação, pode ir à mikvá e ficar inteiramente limpa, pura e fresca para o marido. Toda vez que chegar em casa da mikvá, é como e fosse uma noiva outra vez. O rosto de minha professora de kallah se ilumina em um sorriso largo quando diz isso, os olhos arregalados em uma animação exagerada.
Passei inúmeras vezes diante da mikvá sem ter ideia do que era. O lugar fica em um discreto prédio de tijolos ocupando a maior parte da Williamsburg Street, com vista para a via expressa Brooklyn-Queens. À noite os homens sabem que devem evitar essa rua, mas, como não fica no caminho para nada, ela é tranquila também durante o dia. As mulheres frequentam a mikvá apenas quando está escuro, protegidas pelas sombras para não chamar a atenção, como vim a saber. Na mikvá há algumas atendentes, todas mulheres mais velhas, já tendo passado pela menopausa. Segundo a lei é necessário ter alguém para atestar que você está realmente pura.
Como noiva, irei à mikvá pela primeira vez cinco dias antes do casamento. Já estou com uma receita de pílulas anticoncepcionais para controlar meu ciclo, a fim de não correr o risco de menstruar antes do casamento. Se isso acontece, diz a professora de kallah, você se torna impura, e o casamento não é consumado. Seria um desastre, afirma; uma garota que não está limpa no dia do casamento não pode dar as mãos ao chassan após a cerimônia, e assim todo mundo no bairro vai saber que ela não está limpa. É uma vergonha para toda a vida. E você também não pode dormir no mesmo apartamento, precisa ter uma shomer, uma guardiã, durante todo o tempo em que estiver impura, até passar pelo ritual de purificação.
Não me sinto à vontade com a ideia de tirar a roupa na frente de outra mulher, a atendente da mikvá, uma estranha. Falo isso para minha professora. Ela me assegura que durante o processo de inspeção posso ficar de roupão e que, quando se mergulha no banho, a mulher só olha quando já se está dentro da água, e segura seu roupão na frente como uma cortina quando você sobe os degraus.
Mesmo assim, passei a vida com a ideia de que nem os móveis da casa deveriam ver meu corpo nu. Nunca me dei o trabalho de limpar o espelho embaçado no banheiro. Nunca nem sequer me examinei ali embaixo. Isso não está certo.
A pílula, prescrita por uma parteira local, me faz acordar no meio da noite, agarrando minha barriga, o enjoo vindo em ondas. Tento comer uma torrada e bolachas de água e sal, e vomito um pequeno bolo empapado de migalhas integrais. A parteira diz que melhora com o tempo, e que posso parar assim que estiver casada.
Passo todas as manhãs nas semanas que antecedem meu casamento lutando contra o enjoo incessante para que consiga reunir forças e possa fazer as compras do enxoval.
- Nada Ortodoxa
- Deborah Feldman
- Intrínseca
- 304 páginas
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