Fernando Luna
Logo mais a gente goza
Na Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre a quarentena que foi sem nunca ter sido, a peculiar teoria do caos bolsonarista e a torcida para que a manhã chegue mais cedo
“CALMA CALMA
LOGO MAIS A GENTE GOZA
PERTO DO OSSO
A CARNE É MAIS GOSTOSA”
Paulo Leminski, 1991
Você sobreviveu a três meses de isolamento, então aguenta mais um pouquinho.
Qual a lógica de aturar prisão domiciliar quando a pandemia mal começava e agora, com dezenas de milhares de novos casos por dia, cismar em sair de casa agarrado à primeira desculpa que aparece?
Respira. Olha quantas cidades obrigadas a rever a flexibilização precipitada. Segura. Logo a vida volta ao normal. Talvez não um otimista novo normal, nem um previsível velho normal: um normal-normal, com novos medos e velhos vícios.
Se puder, fica em casa. Espera descobrirem se já é a segunda onda ou ainda estamos tomando um caldo da primeira. Deixa publicarem os resultados oficiais da fase 3 dos testes de vacina. Amarra o tchan até concluírem se o contágio chegou ao platô. Adia o bar com os amigos até os leitos de UTI esvaziarem.
Ah, você sabe disso tudo. É dos poucos que leva a sério o distanciamento social. Claro. Todo mundo jura que respeita e tal, mas a rua está cheia como se não houvesse amanhã – e, desse jeito, não vai haver mesmo. Na real, nunca chegamos perto dos 70% de isolamento recomendados. Afrouxamos a quarentena sem nunca ter entrado nela pra valer.
Todo brasileiro se sente uma ilha em lockdown, cercado de cloroquiners por todos os lados.
Tenta dar mais uma embromada entre quatro paredes. Monta outro quebra-cabeça, faz um nude pro stories da Nin Magazine. Vai paquerar na live da Teresa Cristina. Faz outra aula de kundalini pela internet, arrisca uma festinha no Zoom. Põe seu mop pra trabalhar.
Melhor: lê um livro do Leminski – os versos lá em cima são de “La Vie en Close”, provavelmente a melhor desculpa que você vai arranjar para ficar de casa, inclusive depois que esta distopia passar.
“A RARA OCASIÃO
EM QUE O ESPERADO ACONTECE”
William Carlos Williams, 1946
Desde que um morcego bateu as asas em Wuhan e provocou uma pandemia global, Jair Bolsonaro aprimora sua peculiar teoria do caos.
Partiu da hipótese negacionista do “vírus superdimensionado”, para logo degringolar em “gripezinha”, “brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”, “e daí”, “ninguém vai tolher meu direito de ir e vir”, “pra que levar terror ao povo”.
As palavras viraram ações. As ações, ou falta delas, calamidade. Frita o ministro da saúde, frita o outro ministro, vai sem ministro mesmo. Antes tarde do que nunca, caiu a Grande Ficha da Laerte: não era bravata, era estupidez.
O Datafolha revela que, agora, a maioria dos brasileiros considera Bolsonaro “pouco inteligente” – adoro a polidez das pesquisas de opinião. Mas o fato de ele ser presidente da República também deve dizer algo sobre a inteligência da maioria dos eleitores.
Somando uma insensatez à outra, ninguém se surpreende com o Brasil ultrapassando 57 mil mortos e Brasília em estado de calamidade pública. É apenas uma rara ocasião em que o esperado acontece, como no verso de “Na Casa de Kenneth Burke”, de William Carlos Williams.
O poeta, aliás, trabalhou como médico a vida toda. Jamais escreveu sobre cloroquina.
“FAZ ESCURO MAS EU CANTO
PORQUE A MANHÃ VAI CHEGAR”
Thiago de Mello, 1965
Faz escuro porque o presidente ainda é presidente, mas eu canto porque o ministro não é mais ministro. Vou festejar, vou festejar.
E se Abraham Weintraub virar mesmo diretor do Banco Mundial, boa sorte pro Banco Mundial no seu penar. Não é falta de empatia. Apenas a pequena alegria de tirar da frente um problema, diante de tantos outros: Augusto Heleno, Damares Alves, Ernesto Araújo, Marcos Pontes, Onyx Lorenzoni, Paulo Guedes e Ricardo Salles.
Esse governo parece uma dissidência da Carreta Furacão.
Escuro, sim. Deve ter mais militar no poder do que em 1965, primeiro ano da ditadura, quando Thiago de Mello publicou o poema “Madrugada Camponesa”. Um general no comando da Casa Civil e outros 2715 milicos espalhados pelo executivo, apurou o Poder 360. Mas faço coro com o Tribunal de Contas da União, que investiga a militarização do serviço público civil.
Falando em investigação, fica cada vez mais evidente que a milícia subiu a rampa do palácio. Escuridão é pouco para isso. Mas eu puxo um samba-enredo, vestido de baiana e bebendo catuaba, porque prenderam o Fabrício Queiroz. Agora só falta pegar os amigos do Queiroz.
Do jeito que a coisa anda, a manhã vai chegar antes de 2022.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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