Bairro da Liberdade O lugar dos restaurantes, dos karaokês e de um mundo inteiro de cantos e pessoas interessantes é examinado por Fabrício Corsaletti
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O Kintarô não tem fim
às cinco em ponto da tarde
quem trabalhou, trabalhou
eu que não trabalho fora
nem gosto de chororô
saio de casa depressa
entro num trem do metrô
e antes que a chuva caia
ou que o sol queira se pôr
estou bebendo cerveja
no balcão do Kintarô
cerveja, saquê, shochu
marisco, polvo, escargot
berinjela, costelinha
de porco, torresmo — pô
como não se transportar
dos pântanos onde o grou
chafurda até as alturas
em que ele voa, senhor
do ar? e o céu escurece
em cima do Kintarô
hora da lanterna rubra
e da lua de Li Po
surge uma mulher dourada
tipo Brigitte Bardot
dona Líria vai embora
chegam os reis do sumô
Taka e Wagner, seus filhos
cujo avô um dia morou
em Presidente Prudente
esse é o lugar — Kintarô
e não tem tevê ligada
jamais um grito de gol
fica na Tomás Gonzaga
57 — Kintarô
(“Balada do Kintarô”, do meu livro Baladas,
de 2016, do qual recebo a cada três meses a
prestação de contas e portanto sei que você não leu.)
* * *
Quem me levou ao Kintarô pela primeira vez foi meu amigo Darkon Os Burros N’Água Roque. Darkon Roque, o designer minimalista, o sambeiro tarimbado. Era a época do Filial, do São Cristóvão e do Ó do Borogodó — 2003, 2004? Numa noite de bebedeira, a voz trançada pelo álcool, ele fez o seguinte discurso:
— Amanhã vou te levar num bar especial, o Kintarô. Quem nunca bebeu no Kintarô nunca bebeu na Liberdade. O Kintarô é a chave da Liberdade, o portal da Liberdade. Um portal que faz do cliente um bumerangue: você se joga através dele e cedo ou tarde acaba voltando pra lá. O Kintarô está pra Liberdade como as tirinhas do Angeli estão pro Baixo Augusta ou como a Rita Lee está pra cidade inteira: a sua mais completa tradução etc. Passo na sua casa às três da tarde.
Beleza.
No dia seguinte, lá estava ele com seu colar de contas azuis, sua roupa de linho branco e suas sandálias de couro cru. Fomos de metrô. Adoro ir pra Liberdade de metrô porque você pega o trem no Brasil e, minutos depois, está num país asiático. (Estou exagerando, claro. Mas o que seria da literatura sem alguns exageros? A vida é muito chata, meu.)
Da praça da Liberdade ao Kintarô são duas quadras e meia, e percorremos o caminho devagar, comentando o show da banda Pau D’Água na noite anterior. Ninguém falava ainda em izakaya — essa palavra simplesmente não existia entre os botequeiros da Zona Oeste. Ninguém chamava o Kintarô de Kintáro, como tenho ouvido por aí. Não, Kintaro não tem circunflexo no o, mas quando me dei conta já tinha escrito várias vezes Kintarô em crônicas e poemas. O que fazer? Fui conversar com o Taka, filho da dona Líria, a proprietária. Contei a ele meu duplo problema, disse que 1) dificilmente meus livros teriam uma segunda edição, o que me permitiria corrigir o erro, e 2) Kintarô rimava com sumô, enquanto Kintáro rimava com Camaro. Generoso, o Taka me deu autorização pra usar essa grafia, a nosso ver mais simpática. Aproveitou e confessou que estava pensando em pintar um acento no letreiro do bar, pra acabar de vez com essa coisa afetada de dizer Kintáro. (Esse último período é mentira.)
Voltando a 2003, 2004.
Logo de cara gostei da cortininha azul e branca que escorria como uma franja sobre a fachada do bar. Na perna mais curta do balcão em L, à direita de quem olha pra fachada, ficava a estufa das comidas quentes, brasileiras com algum tempero oriental; na parte mais comprida, a de comidas frias, japonesas de raiz. No fundo havia uma única mesa, com uma geladeira marrom atrás, e foi lá que nos acomodamos.
Fui ao Kintarô centenas de vezes depois dessa primeira experiência e só me arrependo de não ter ido mais
Reparei nas fotos de lutadores de sumô pregadas nas paredes. O Darkon me explicou que aquele era um bar de sumotoris. Dona Líria trouxe uma cerveja trincando de gelada e dois copos, e quando ela saiu pra buscar o tofu que o Darkon lhe pediu, meu amigo me explicou que seus dois filhos (da dona Líria, não do Darkon, que ainda não tinha tido nenhuma das suas nove! crianças), lutavam em campeonatos brasileiros e internacionais.
Às sete da noite o bar estava cheio de homens velhos (pelo menos pros meus padrões da época), noventa por cento com traços orientais. Eles bebiam cerveja e uísque, e comiam em silêncio ou conversando em voz muito baixa com o vizinho de balcão. Ainda se fumava em lugares fechados, e a fumaça da nicotina criava no Kintarô um clima de filme noir.
Comemos metade do cardápio em pequenas porções servidas em cumbucas.
A certa altura o Darkon me chamou pra ir lá fora. Agora, no canto direito superior da entrada, havia uma lanterna vermelha de papel acesa, dessas que lembram um balão. “Olha essa luz, que maravilha”, ele disse. Atravessamos a rua — uma rua de uma única quadra, com nome de poeta árcade — e da outra calçada olhamos pro Kintarô, encravado na sequência de predinhos baixos. Parecia um bar em miniatura. Eu esqueci em que cidade estava. São Paulo tinha seus segredos. Você só tinha que procurar.
* * *
Fui ao Kintarô centenas de vezes depois dessa primeira experiência e só me arrependo de não ter ido mais. O bar mudou pouco ao longo dos anos, mas seu público mudou bastante. Hoje você encontra todo tipo de gente falando alto em torno dos petiscos que a dona Líria prepara de dia pra vender à noite: trabalhadores do bairro e hipsters de camisa havaiana, homens, mulheres e todo o radiante arco-íris de gêneros dos novos tempos, velhos e jovens, nisseis, sanseis e o escambau.
Numa cidade de empreiteiros desmiolados, que apagam sem dó qualquer esboço de memória coletiva, o trigésimo aniversário do Kintarô, em 2023, está sendo aguardado com grande expectativa entre os bebuns da resistência. Outro dia um freguês, que ainda não entendi se é crítico de arte ou sommelier, definiu o adorado botequim como um clássico moderno, como se diz desses artistas que, apesar de recém-chegados à história da arte, conseguem marcá-la de maneira indelével. Se fosse cineasta, o Kintarô seria um Wong Kar-wai ou um Tarantino. Se fosse poeta, seria o Paulo Leminski.
Como a Paris de Hemingway, o Kintarô não tem fim. Mais cedo ou mais tarde, não importa quem sejamos, não importa como o façamos, não importa que mudanças se tenham operado em nós ou na cidade, a ele acabamos regressando. O Kintarô vale sempre a pena e retribui tudo aquilo que você lhe dá. Mas neste texto eu quis retratar o Kintarô dos meus vinte anos, quando o Brasil caminhava pra frente — e não pra trás — e a gente acreditava que podia ser feliz.
* * *
IMITAÇÃO DE SEI SHÔNAGON
Coisas que amo no Kintarô. A cortininha que escorre como uma franja sobre a fachada estreita. A fachada estreita. A gravura azul com três sumotoris vazados em branco. A lanterna vermelha na entrada, quando escurece. A proximidade do balcão com a rua. A berinjela no missô. O torresmo, o sunomono e os mariscos. A vaca atolada, as coxinhas minúsculas e a panela de oden. As duas bandejas de oniguiri cobertas por plástico-filme. A conversa dos outros. A conversa do Taka. A conversa do Yoshi. A conversa da dona Líria. As garrafas de uísque com etiquetas escritas à mão: Gaúcho, Takahashi, Ohata San. A cerveja gelada e a cachaça mineira. O 7&7 do Yoshi. O nirá com ovo, a moela, a manjubinha. A sardinha marinada, a sardinha marinada, a sardinha marinada. O balcão e os azulejos que envelhecem junto com os clientes. A árvore da calçada onde se amarram cachorros. O shochu que derruba os incautos. A lua cheia que abençoa os fumantes.
Fabrício Corsaletti nasceu em 1978 em Santo Anastácio, Oeste do Paulista. Formou-se em letras pela USP e desde 1997 vive na capital. Publicou quase 20 livros, entre eles “Esquimó”, “Perambule”, “Poemas com Macarrão” e “King Kong e Cervejas”